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sexta-feira, 17 de outubro de 2014

A Bíblia e o homem
A proposta desse trabalho é fazer uma abordagem do homem antes da queda, depois da queda e em sua restauração (levando em consideração o “já” e o “ainda não”) em sete aspectos: biológico, psicológico, moral, espiritual, social, cultural e teológico. Dessa maneira, poderemos traçar um perfil geral do ser humano e entendermos suas angústias e visualizarmos a solução para seu mal.
Cremos que Deus fez todas as coisas para a sua glória. Dessa maneira, o Senhor fez do nada uma estrutura, como afirma Wolters (2006, p.69), “refere-se à ordem da criação, à constituição criacional constante de qualquer coisa, o que faz com que o objeto ou entidade seja o que é”. Essa estrutura estava direcionada para a sua grandeza.
A estrutura biológica do homem (sua estrutura física) era marca por uma profunda harmonia com o ecossistema em que habitava. A alimentação humana era baseada em vegetais (Gn 1.29), o que até hoje tem boa receptividade ao nosso organismo, todavia não endossamos nenhuma dieta vegetariana como um intuito de crescimento espiritual, pois tomamos como base de Romanos 14.6. Antes da queda homem foi abençoado com fecundidade (Gn 1.28a). A vida do homem não estava sujeita ao ataque de vírus e bactérias, tampouco a doenças mortais, porque a vida do homem estava sujeita a sua obediência a ordenança de Gênesis 2.17.
Entendemos por estrutura psicológica a relação do homem consigo mesmo, com os outros e com o mundo ao seu redor (abstraímos a relação com Deus na estrutura espiritual e teológica). Dessa maneira, o homem não possuía grandes fontes de stress, pois não havia problemas familiares, nem mesmo com as questões estéticas de um com o outro (Gn 2.25), pois “uma vez que a aparência deles era perfeita, não tinham o menor temor de que um cônjuge desaprovasse o outro” (PIPER, 2011, p.30), tampouco a terra dava cardos e abrolhos, mas arvores boas à vista e agradável ao consumo (Gn 2.9). O homem vivia em um estado de inocência, porém “tinha a liberdade e o poder de querer e fazer aquilo que é bom e agradável a Deus, mas mudavelmente, de sorte que pudesse decair dessa liberdade e poder” (Confissão de Fé de Westminster [CFW] IX, 2).
Apesar de ética e moral serem sinônimos perfeitos, optamos por entender como Vasquez (1984) que a ética cuida de princípios filosóficos, enquanto a moral trata de normas de conduta e juízos de valor. A grande norma de conduta do Éden era: da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás (Gn 2.17).
Sobre a estrutura espiritual entendemos o relacionamento do homem com Deus, o qual era extremamente intenso e prático, pois foi criado à imagem e semelhança de Deus que caminhava com ele no paraíso pela viração do dia (Gn 3.8). A própria criação era uma mensagem viva e eficaz para nossos mais antigos antepassados.
Entendemos que a estrutura social do homem deve se confundir com o próprio mandato social (assim como a estrutura cultural deve se confundir com o mandato cultural). O mandato social se dá na ordem do Senhor para que o homem se multiplicasse e enchesse toda a terra (Gn 1.28a). O homem, antes da queda, vivia em harmonia com sua esposa, pois não temos relatos bíblicos que desabonem essa informação, pode-se dizer que apenas Adão e Eva nesse estado de inocência poderiam dizer: tenho o melhor cônjuge do mundo.
A base do mandato cultura está nos imperativos de Gênesis 1.28b e o homem, até a queda, desenvolveu-a consonante a vontade do Criador e, por isso, exercia excelente mordomia. Essa interação com o mundo ao seu redor é basicamente para o seu sustento e para a glória de Deus.
Consideramos a estrutura teológica dentro da realidade cúltica. No Éden, não havia espaço para a heresia até a tentação. Não temos uma estrutura formal de culto, pois ela acontecia na vida prática do homem com Deus. Nossos pais viam claramente a verdade do Criador em tudo ao seu redor.
Após a queda, quando nossos primeiros pais foram seduzidos por satanás (Ap 20.2. Veja CFW, VI,1), toda a estrutura humana é pervertida e a inclinação mais efetiva do homem é para o pecado e a rebelião contra o Senhor. Todavia apesar de nossas misérias Deus levanta homens para pregar a esse povo apresentando-lhes a leis para servir de aio até a consumação da promessa feita em Gênesis 3.15, o proto-evangelho.
O homem, em sua estrutura biológica do homem passa por uma terrível mudança, pois enquanto lhe estava vedada a morte física (separação entre corpo e alma até a ressurreição) ela começa a acontecer no momento do pecado e se concretizou quando completou cento e trinta anos (Gn 5.3) e esse traço de morte é transmitido a todos os seus descendentes (Rm 5.12), de tal maneira que os dias dos homens são encurtados a cento e vinte anos por serem carnais (Gn 6.3).
A alimentação do ser humano é afetada, pois, segundo Campos (2012, p.237), o fato do homem comer a erva do campo (Gn 3.18) o iguala às bestas feras e após o dilúvio há a permissão de se alimentar de tudo o que se move e vive (Gn 9.3). Contudo Campos (2012, p.239) defende que essa permissão poderia apenas validar uma prática que já existia, pois a queda afetou nosso paladar e, assim, nossas opções gastronômicas. A fecundidade, também, é afetada aparecendo a esterilidade (Gn 11.30; 25.21; 29.31).
O homem em pecado não consegue lidar com seus pecados. Vemos Adão culpar sua esposa do pecado e ela, por sua vez, culpa a serpente, ao invés de cada um admitir seus próprios erros e pedirem perdão. Kidner (1979, p.65), comentando Gênesis 3.11,12, afirma: “A segunda resposta admite a verdade, mas a envolve contra a mulher e, em última instância, contra Deus”. O homem busca subterfúgios verbais para esconder ou amenizar seu mal, mas, conforme Kidner apresenta, em seu comentário, esse é apenas mais um obstáculo à misericórdia.
Quanto aos valores morais, a queda implica na quebra de Gênesis 2.17 o que distorce completamente os juízos de valor do ser humano, pois o que antes era bom passa a ser mau. A nudez, outrora boa, passa a ser um problema tal que Adão e Eva tecem cintas (Gn 3.7) para solucioná-lo, porém Deus age estabelecendo um padrão indumentário que vai do pescoço aos pés (POLLARD, 2006, p.25). O homem opta por assassinar (o caso de Caim e Abel, Gn 4.8), por adquirir um relacionamento poligâmico (Lameque em Gn 4.19), relações incestuosas (Gn 19.31-37).
A estrutura espiritual do homem caído é marcada por uma grande ruptura com o Senhor, pois quando nossos primeiros pais ouviram a voz do Senhor esconderam-se dele, pois reconheciam, sem arrependimento, o pecado que tinham ometido. Nessa situação, toda a humanidade morre espiritualmente (Rm 5.12) e a natureza oferece uma mensagem que é capaz de deixá-lo indesculpável (Rm 1.20), mas não de convertê-lo (CFW I,1).
Na estrutura social, a relação do homem com sua família se torna profundamente complicada, porque logo após a queda, como vimos, temos uma total falta de consenso dos primeiros cônjuges e um fraticídio entre seus filhos e se agrava em uma banalização da vida: Lameque mata duas pessoas por motivos fúteis (Gn 4.23). Dessa forma, o homem caído tem grande problema consigo, com o próximo e mesmo com o mundo ao seu redor. As paixões doentias e egoísticas passam a ser a palavra de ordem e para satisfazê-las as filhas de Ló comentem incesto, os habitantes de Sodoma queriam se deitar com os anjos (Gn 19.5) e a mulher do Levita foi brutalmente estuprada e morta (Jz 19.25,26).
A linhagem de Caim tem um desenvolvimento cultural invejável (Gn 4.16-26). O leitor ímpio ou descuidado poderá concluir que foi uma bênção para Caim se afastar de Deus. Se a prosperidade fosse sinal da aceitação do Senhor Caim e sua linhagem seriam os mais aprovados, ledo engano. Segundo Kidner (1979, p. 73), “a família de Caim é um microcosmo: seu padrão de proezas técnicas e de fracasso moral é o da humanidade”. Desenvolvimento tecnológico sem rígidos princípios éticos e sem respeito à Palavra só pode levar ao orgulho e maior depravação, veja-se a inútil briga pelo desenvolvimento das pesquisas com células-tronco embrionárias. Por causa dos efeitos da queda, o homem não consegue sujeitar e dominar a natureza para a glória de Deus e, assim, promove um grande desequilíbrio ecológico.
Na perspectiva teológica, o homem caído pode se voltar ao sincretismo religioso (como o bezerro de ouro de Êx 32.4,5) ou na mais densa idolatria. Calvino (2001, p.64,65), comentando o primeiro capítulo de Romanos, entende que o ser humano é afetado por uma terrível cegueira, mas que não lhe consegue eximi-lo da ignorância, ou seja, o ser humano está impedido de ver a glória do Senhor na criação, mas isso não faz dele menos pernicioso. Hendriksen (2006, p.52), entende que essa idolatria é própria de corações que vivem apenas no plano horizontal o que consequentemente os direciona para torpeza mental, a desesperança emocional e a depravação espiritual.
Segundo Wolters (2006, p.79) a redenção implica em promover a restauração (volta ao estado original) não apenas uma área limitada do homem, ele por inteiro. Portanto. o ser humano, em sua estrutura biológica, deve retornar ao seu estado original, alimentando-se no “já” de forma adequada evitando a glutonaria (Gl 5.21; Pv 23.2).
Calvino (1998, p.169) entende que o termo κῶμος por “uma vida dissoluta e todo gênero de intemperança de apetite”, buscando uma alimentação saudável. Pohl (1997, p.127), considera que Paulo entende a glutonaria como um pecado que gera um mal interpessoal com o rico fazia a Lázaro (Lc 16.21). Contudo acreditamos que as “leis da saúde” interpretadas pelos adventistas, apesar de bons efeitos práticos, baseiam-se na salvação pelas obras e em uma má interpretação da Palavra.
Cristo adverte Marta: Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá (Jo 11.25). Nossa fome e sede serão direcionadas a Jesus e saciadas por ele (Jo 6.35), de tal maneira que Piper (2006, p.23) entende que a comida e a fome foram criadas para que tivéssemos ideias do que Cristo quis dizer quando disse: “eu sou o pão da vida” (Jo 6.35), assim, “quando nós comemos, experimentamos a caracterização de nosso alimento celeste – o Pão da vida e quando jejuamos, dizemos: ‘eu amo a Realidade acima da caracterização’” (PIPER, 2006, p.24).
Na estrutura psicológica regenerada, a carne milita contra o espírito (Gl 5.17) e, assim, o homem continua passível de não admitir seus erros, inclinado a gostar daquilo que desagrada o Senhor, por isso, Paulo constata que não fazia o que preferia, mas o que detestava (Rm 7.15). Sproul (2009, p.41), citando Edwards, afirma: “a vontade sempre escolhe de acordo com
sua mais forte inclinação do momento”, por isso, Calvino afirma que “o coração pio não faz o bem que tanto deseja, visto não ser acompanhado do devido empenho” (2001, p.255). Na realidade escatológica do “ainda não”, “a vontade do homem se torna perfeita e imutavelmente livre para o bem só” (CFW, IX, 5).
O homem regenerado vive o mesmo problema de Isaías, termos lábios impuros e habitamos no meio de pessoas de impuros lábios (Is 6.5). Mediante essa realidade, o Mestre pede ao Pai para que sejamos santificados na verdade da Palavra, porque estamos no mundo, mas não pertencemos a ele. Costa (2012, p.130), comentando Jo 17.15,16, afirma: “antes o pecado comandava nosso pensar e agir; agora, ele ainda nos influencia; todavia não mais reina”, por isso, o crente deve se deter à Palavra e a oração (meios de preservação, CFW XVII,3). Spener (1985, p. 77) afirma sabiamente que “o Espírito fala ao nosso coração na medida em que nele faz morada”, todavia na eternidade teremos plena comunhão com o Senhor e seremos incapazes de pecar.
Quando regenerados, somos vivificados de nossos delitos e pecados (Ef 2.5) e, em Jesus Cristo, temos paz com Deus (Rm 5.1). Segundo Calvino (2001, p.180), a conclusão de Paulo “as almas desditosas estarão sempre desassossegadas, a menos que repousem na graça de Cristo”. Dessa maneira, a confissão de Agostinho de Hipona é a de todo crente: “[...] nos criastes para Vós [Deus] e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousar em Vós [Deus]”. Essa é a base da espiritualidade do homem regenerado.
Horton (2006), seguindo a classificação da cultura de Helmut Richard Neibhur, defende que Cristo não pode ser contra ou a favor da cultura, tampouco sobre ou em paradoxo a ela, mas ser o seu transformador. O evangelho de ser apresentado ao mundo apontando o pecado de nossos dias e oferecer um caminho melhor. Dessa maneira, a nossa transformação radial pelo arrependimento nos leva a não entrar nos esquemas humanos (Rm 12.2), o que faz de nós influenciadores.
A teologia do homem regenerado, busca uma aproximação sempre maior e mais íntima com a Palavra revelada (Revelação específica) (Is 55.6), buscando interpretá-la de tal maneira que seja sempre profundamente clara e capaz de nos oferecer a plena certeza sobre as verdades em que fomos instruídos (Lc 1.4). Essa clareza teológica deve nos conduzir a uma maior compreensão de nossa miséria e da grandeza de Deus. Geralmente, uma teologia coerente gera crentes submissos a Palavra e obedientes, não há piedade alguma na rebeldia.

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