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quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

AS POSSIBILIDADES NOS DIAS MAUS: O LIDAR COM AS SITUAÇÕES FAVORÁVEIS OU ADVERSAS


As possibilidades nos dias maus: o lidar com as situações favoráveis ou adversas
Charles Haddon Spurgeon, no sermão 320, afirma, a partir de Filipenses 3.11 que “o contentamento não é uma inclinação natural do homem. Cobiça, descontentamento e murmuração são tão naturais ao homem como espinhos e cardos ao solo[...] o contentamento é uma das flores do céu. Se nós a queremos, ela tem que ser cultivada”
Algumas pessoas se equivocam acreditando que nas situações de bonança o viver contente é fácil, contudo será que se Ló atentasse firmemente para o fato de que as campinas bem regadas de Sodoma e Gomorra era povoada por pecadores contra o Senhor (Gn 13.10-13), os quais o afligiriam com o comportamento libertino desses insubordinados (2Pe 2.7). Se compreendesse que nessa cidade perderia sua mulher e suas filhas se tornariam propensas ao incesto, com certeza, teria buscado paz com seu tio Abrão (Gn 13.7,8). Nabal, tão como o Rico da parábola de Jesus (Lc 16.20-31), não conseguiu dividir o que tinha a fim de auxiliar os mais necessitados (1Sm 25.3-18). O Jovem Rico não consegue abrir mão de seu dinheiro e continua a servir à lei, a Cristo (Mt 19.17-22).
Em outras ocasiões pessoas, tal como o povo de Israel, no deserto, diante das dificuldades lembram-se dos peixes, pepinos, melões, cebolas e alhos (Nm 11.5). Jesus mostra que, no solo rochoso das perseguições ou no espinhoso das tentações do mundo, os crentes insipientes não conseguem criar raízes ou desenvolverem-se adequadamente.
Vemos, à luz das Escrituras Sagradas, que ora a riqueza, ora as dificuldades podem apresentar suas armadilhas para as almas que não possuem um coração resignado. Contudo Paulo mostra que vive com tem. Ele usa o termo grego autárkes (ατρκης), autossatisfação.
Viver com aquilo que se tem é um desafio especial para nossa geração. Quando ouvimos as histórias de nossos antepassados, que viviam sem a maioria dos bens de consumo que julgamos essenciais, compreendemos o que Karl Marx (1818-1883) quis dizer com fetiche do mercado. Marx entendia que, quando o produto sai da fábrica, ganha um valor infundado. Para muitas pessoas, a panela de arroz, a panela de pressão elétrica e a smart tv proporciona muito mais que prazer, mas o acesso a um patamar social, continuamente, a ser alcançado. Para o pensador prussiano, essa realidade doentia não é muito diferente daquela em que o povo do deserto substituiu Moisés pelo bezerro de ouro, pois esta do homem a capacidade e compulsão de atribuir valor a elementos de cálculo fácil.
A grande variedade de produtos que facilitam nossa vida, à contragosto de muitos, não nos fez membros de um geração excepcionalmente feliz, mas cada vez mais dependente de chips e baterias, onde as relações são cada vez mais artificiais. Entretanto o contentamento do Apóstolo não o mostra como estóico (doutrina filosófica que pregava a resignação ao destino), tampouco um alienado de tudo e todos, mas alguém que, na sua intimidade com Cristo, sabe que tudo nesta presente vida é fugaz e pronto para fenecer. Buscar as riquezas como soberanas é rebelar-se contra Deus, pois Jesus afirma: “ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um e amar ao outro, ou se devotará a um e desprezará ao outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas” (Mt 6.24).
Essa realidade de Paulo (veja 2Co 11.23-27), como afirmara Spurgeon, só pode surgir pelo responsável cultivo. Paulo mostra, que diferente dos exemplos anteriores, sabe ser humilhado (usa a mesma palavra que usou em Fl 2.8 para descrever Jesus em seu Estado de humilhação) e honrado, assim como passar pela abundância e fartura, como pela escassez e necessidade (Fl 4.12). Contudo nesses momentos afirma conhecer o segredo ou mistério (myeo – μυω).
Na época de Paulo havia religiões de mistério em que seus adeptos eram submetidos a provas que os levavam a graus mais altos, nos quais conheciam os segredos daquele grupo. Paulo está mostrando à comunidade de Filipos que os momentos fáceis e difíceis não lhe corromperam, porque lê conhece o segredo para permanecer intacto nessas circunst6ancias diversas: “tudo posso naquele que me fortalece” (Fl 4.13).
Filipenses 4.13 pode ser profundamente distorcido pela teologia da prosperidade prometendo, algo que Paulo não disse. O verbo poder utilizado por Paulo aqui é ischyo (σχω), ou seja, estar apto, ter boa saúde ou força para fazer algo. Esse poder não está nele próprio, mas naquele que o fortalece, alguns manuscritos, enfatizam que é Cristo. O tudo que ele só consegue suportar em Cristo é o estar contente na humilhação e na honra; na fartura e na fome ou na abundância ou escassez.

Portanto, Paulo mostra que Jesus nos dará, como foi oferecido a José do Egito, a disposição para ser honrado da casa do Pai ou humilhado pelos irmãos na cisterna; ser valorizado por Potifar ou caluniado pela esposa propensa ao adultério; esquecido na prisão ou elevado por Faraó. O Senhor nos dará os dias de fartura para o nosso preparo e os sofrimentos para o nosso quebrantamento, porém, em tudo, poderemos suportar (quer a vaidade ou o desprezo) focados em Jesus.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

AS POSSIBILIDADES NOS DIAS MAUS: A RELAÇÃO COM O PRÓXIMO


As possibilidades nos dias maus: a relação com o próximo
“Tudo posso naquele que me fortalece”. (Fl 4.13)
Nesse período em que nosso país vive uma terrível recessão, a a cura de todos os problemas é puramente material. Comentaristas, no “horóscopo” dos números do mercado, preveem um futuro nebuloso e cheio de incógnitas. De fato, precisamos nos precaver, pois o dinheiro é bênção de Deus que não pode ser desperdiçada, tampouco gasta de forma desordenada.
O grande problema das precauções está no momento em que elas tomam uma proporção pecaminosa e deixamos de compreender a soberania de nosso Deus. O Senhor está no controle do mundo, mesmo quando esse parece descontrolado. Em Mateus 6.25-34, os discípulos de Jesus estão preocupados com o que comerão, beberão e como se vestirão, mas Jesus mostra que assim como as aves dos céus têm o que comer e beber, e os lírios dos campos têm um vestuário suntuoso, o mesmo Senhor que prove alimento e vestimenta a esses seres, que nos parecem insignificantes é aquele que soberanamente abastece nossas dispensas, por isso, cabe a nós buscarmos “em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas” (Mt 6.33).
Jesus não nos promete na Palavra uma vida de certeza e caminhos planos, mas afirma que os amanhã trará os seus próprios cuidados, mas podemos confiar na providência divina em todos os dias de nossa vida (Mt 6.34), como afirma Pedro: lançando sobre ele toda a vossa ansiedade, porque ele tem cuidado de vós” (1Pe 5.7).
Como enfrentar esses dias que parecem ser difíceis? Como moldarmos o nosso sustento às nossas reais necessidades? Como não viver abalado em meio a crise? Como não ser escravo do dinheiro, valorizando aqueles que têm mais e podem mais? Quando lemos a carta de Paulo aos Filipenses e como ele agradece a o recurso a ele confiado por Epafrodito temos algumas pistas de como lidar com o dinheiro sem sermos seus escravos.
Paulo nos mostra que nosso grande problema está na base em que nos alicerçamos. Quando no dia 24 de outubro de 1929 a Bolsa de Nova York quebrou, foram notificados 11 suicídios, inclusive o de uma funcionária de uma joalheria que se enforcou tendo as dívidas aos seus pés. Contudo, quando Jó, em um único dia sabe que perdera todos os seus bens e inclusive os próprios filhos, ele não busca nenhuma fuga, mas afirma: Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei; o SENHOR o deu e o SENHOR o tomou; bendito seja o nome do SENHOR!” (Jó 1.21).
Em Filipenses 4.10, Paulo se mostra excessivamente alegre com o donativo recebido da igreja de Filipos, contudo mostra que sua alegria não está no dinheiro, porque o amor a ele é a raiz de todos os males (1Tm 6.10), mas no Senhor. O Apóstolo dos gentios mostra que toda a providência humana, em primeira estância, é provocada e determinada pela vontade soberana do Senhor. Quanto ao que recebeu, deixa claro que o que mais o deixa alegre é o cuidado que refloreceu. Paulo usa o verbo grego anathállo (ναθλλω), que significa reflorecer, pois entende que assim como as plantas não existem apenas quando produzem flores e frutos, a comunidade de Filipos não lhe foi favorável apenas quando puderam lhe prover bens materiais.
Provavelmente, a igreja de Filipos contava, em sua membresia, com Lídia, vendedora de púrpura (provavelmente porque fosse viúva e continuava o negócio do marido), que hospedara Paulo, Silas e Timóteo pelo menos duas vezes (At 16.15,40). Talvez o Carcereiro (que foi impedido de cometer suicídio por Paulo – At 16.27-31) e a sua família. Paulo reconhece que essas pessoas, tais como Epafrodito, que andara 1280 Km de Filipos a Roma, são mais importantes do que a ajuda que lhe enviaram.
Paulo jamais concordaria com a atual sociedade utilitarista que valoriza o homem na medida em que esse pode oferecer algo, empresas que investem em um funcionário enquanto é lucrativo. Talvez uma metáfora adequada para essa triste realidade esteja na obra Metamorfose de Franz Kafka (1883-1924), na qual apresenta a personagem Georg Samsa, um caixeiro viajante que odiva seu trabalho e seu patrão, mas não podia mudar de vida porque atuava como arrimo financeiro de sua família. Contudo, ao dormir, acorda vítima de uma terrível metamorfose, pois, agora, era um inseto asqueroso.
No princípio seus entes se condoeram em suas dores, mas, aos poucos, todos foram assumindo uma autonomia que lhes fora ausente e isolando-o em um quarto no qual lhe davam os restos. Aquele que outrora era valorizado, só o era pelo que oferecia, porque, quando deixou de ter valor pelo que fazia, passou a ser insignificante naquilo que era, foi e naquilo que será. Percebamos como crianças e idosos são tratados nessa sociedade.
O Apóstolo dos gentios entende uma verdade preciosa, que apesar de óbvia, tornou-se esquecida: as pessoas, não importa as circunstâncias, são mais valiosas que o dinheiro ou qualquer trabalho que possam oferecer.


quinta-feira, 26 de novembro de 2015

UMA VIDA PAUTADA NO LOUVOR


Uma vida pautada no louvor
“Em tudo, dai graças, porque esta é a vontade de Deus em Cristo Jesus para convosco” (1Te 5.18)
Falar de render graças neste ano, especialmente aos olhos ímpios, parece algo artificial, pois passamos um dos períodos mais tumultuados dos últimos dez anos em uma recessão terrível, com altos índices de desemprego e uma crise de egos na política que parece atravancar todo o cenário nacional. Como Paulo, na Palavra de Deus, pode nos dizer: “em tudo dai graças”?
Quem leu Pollyanna moça de Eleanor H. Porter pode entender que Paulo fora o pioneiro do “jogo do contente”, outros podem acreditar que o Apóstolo fosse adepto daqueles que veem o copo meio cheio e não meio vazio. Contudo é essa a realidade que esse versículo quer elucidar? Mas quanto tudo parece escuro? Como alguém verá o copo da vida meio cheio quando sob o leito do hospital ou do féretro está o ente querido? Como jogar o jogo do contente frente a injustiça e o descaso até mesmo daqueles que outrora compartilhavam conosco de momentos agradáveis?
Com certeza não são essas as intenções de Paulo. Esse versículo deve ser visto no contexto mais amplo da primeira carta aos Tessalonicenses, assim como na vida do próprio Paulo.
O Apóstolo dos gentios estava no meio de suas segunda viagem missionária, passando pela região frígio-gálata com o propósito de visitar a Bitínia, mas o Espírito o quer no Ocidente (At 16.6,7).O Senhor deixa bem claro essa realidade com a visão do homem macedônico pedindo ajuda (At 16.8). A agenda do missionário e a de todo o cristão (que é essencialmente um testemunho vivo de Jesus e do seu poder) não é pautada pelas facilidades, zonas de conforto ou privilégios que alguns campos possam oferecer, mas pela vontade do Senhor que comanda a igreja. Em nenhum momento, o Espírito de Jesus inquiriu a Paulo sobre seus desejos ou capacidades, mas tão somente lhe entregou a missão que, ao encontrar o Ocidente envolveu nossa cultura nos pressupostos do cristianismo.
O início da história da igreja cristã no ocidente foi marcada por bênçãos como a conversão de Lídia (At 16.15) e a libertação da jovem adivinhadora (At 16.16-18), mas pelo açoite e o cárcere em Filipos (At 16.23,24). Eles poderiam murmurar na prisão, mas doloridos e com os pés presos no tronco investiram suas últimas forças em orar e cantar louvores (At 16.25). Libertos pelo Senhor não foram procurar cuidados médicos, mas estavam preocupados com a alma do carcereiro que os tinha prendido (At 16.30-34), concluído esse ofício não retomam antigos projetos e partem para a Bitínia, mas continuam no projeto que lhes foi transmitido pelo Senhor e seguem para Tessalônica (veja 1Te 2.1,2), porque “nenhum soldado em serviço se envolve em negócios desta vida, porque o seu objetivo é satisfazer àquele que o arregimentou” (2Tm 2.4).
Tessalônica é uma cidade de grande porte, atual capital da Macedônia e principal rota comercial do Império Romano. Paulo, Silas e Timóteo se detêm nessa cidade. Paulo dialoga (διαλγομαι – Veja 1Te 2.5) sobre as Escrituras três sábados seguidos nas sinagogas e provavelmente (a contar pelo vasto material de Primeira Tessalonicenses), como era seu costume, ensinou os convertidos de casa em casa (At 20.20).
O ministério de Paulo em Tessalônica frutificou atraindo “gregos piedosos e distintas mulheres” (At 17.4). Contudo, cumprindo a permanente profecia do Senhor em Mateus 5.11,12, Judeus movidos de inveja, tal como outrora foi feito a Jesus (Jo 19.6,5) trazem homens maus da malandragem (andarilhos que se prestavam a serviços escusos). Assim como a Jesus os judeus Tessalonicenses evidenciam o perigo de terem outrou rei senão César (Jo 19.15). A turba faz com que Jasom, homem abastado que hospedara os missionários, fosse preso e solto apenas sob fiança (At 17.6-9). Por causa dessas confusões todas Paulo afirma: “o nosso evangelho não chegou até vós tão-somente em palavra, mas, sobretudo, em poder, no Espírito Santo e em plena convicção, assim como sabeis ter sido o nosso procedimento entre vós e por amor de vós” (1Te 5.5).
A confusão instalada foi tão intensa que Paulo e Silas são envidas, à noite, para Bereia (At 17.10) e depois Atenas. Quando Paulo está em Corinto (no início da década de 50 d.C.), Timóteo que estivera na Macedônia (compare At 18.5 com 1Te 3.1,2).
Timóteo mostra Paulo que a comunidade nascente vivia em uma fé operosa (1Te 1.3); em amor abnegado (1Te 1.3); em firme esperança (1Te 1.3); eleitos (1Te 1.4); imitadores de Cristo e modelo para outros crentes da Macedônica (1Te 1.6,7).
Entretanto não havia apenas rosas. Em uma igreja de homens caídos, que vivem sobe a máxima andai no Espírito e jamais satisfareis à concupiscência da carne. Porque a carne milita contra o Espírito, e o Espírito, contra a carne, porque são opostos entre si; para que não façais o que, porventura, seja do vosso querer” (Gl 5.16,17), apesar de não andarem no pecado (1Jo 3.6-9), mas está suscetível às terríveis investidas deste mundo mal, por isso, Paulo adverto aos efésios: tomai toda a armadura de Deus, para que possais resistir no dia mau e, depois de terdes vencido tudo, permanecer inabaláveis” (Ef 6.13).
Tessalônica era uma cidade portuária e, dessa maneira, oferecia uma larga oferta para o pecado da sexualidade, assim, muitos membros as igreja estavam vivendo em prostituição (1Te 4.3), lascívia (1Te 4.5), impureza (1Te 4.7). Paulo adverte que aquele que rejeita a santificação, não está rejeitando apenas o homem ou uma pregação humana, mas o próprio Deus (1Te 4.8).
Precisavam desenvolver o amor fraternal que fosse capaz de transbordar para com todos os da Macedônia. Werner de Boor, refletindo a Primeira Epístola aos Tessalonicenses, afirma que o verdadeiro amor não é apreendido naturalmente, não somos autodidatas do amor, mas teodidatas dele. O exercício do amor sem a verdadeira instrução de Deus, pelo Espírito Santo, é ora egoísta (pensando apenas em interesses próprios e disposto a usar o outro enquanto lhe for favorável), ora tende a um paternalismo irresponsável.
Outro problema da Igreja Tessalônica estava no aguardo da volta de Cristo. Não faziam suas funções básicas orientados por uma teologia distorcida da parousia. Paulo enfatiza que a volta de Cristo será como um ladrão, ou seja súbita e inesperada (1Ts 5.1-4) e essa espera deve funcionar como fomento para a vigilância moral e não cronológica. O crente não deve estar ansioso pelo dia em que Cristo voltará (como vez e outra pregadores de ontem e de hoje tentam adivinhas), mas por viver de acordo com a vontade do Senhor quando ele chegar, porque, apesar de sabermos que as obras não podem salvar o homem elas funcionam como um ótimo indicador de que o indivíduo foi salvo.
Paulo não busca o lado bom da vida, porque ela não possui essa realidade, mas procura compreender a providência secreta de Deus sabendo todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito (Rm 8.28). Quando vivemos nessa perspectiva, podemos como José manter nossa santidade mesmo quando somos humilhados por aqueles que deveriam nos amar, permanecermos íntegros mesmo frente ao pecado, inabaláveis mesmo esquecidos no cárcere e sem perder a consciência de que apesar de ser mal aquilo que fizeram para nós, Deus pode tornar o mal em bem (Gn 50.20).



sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Escravo de quem?


Escravo de quem?

“Paulo, ESCRAVO de Jesus Cristo, chamado para ser apóstolo, separado para o evangelho de Deus”. (Rm 1.1)

No último 20 de novembro, nosso país comemorou o dia da consciência negra, o qual substituiu o antigo feriado do dia 13 de maio, quando se relembrava o dia da abolição da escravatura no Brasil. A explicação está no fato de que nesta data houve apenas uma postura legal, que não interferiu muito na vida do negro, enquanto aquela mostra uma comunidade quilombola de 15 a 20 mil pessoas que viveram de 1590 a 1694 em liberdade e eficiente organização civil.
O grande ícone da consciência negra foi o herói brasileiro Gamga Zumba ou Zumbi (1655-1695) (aquele que estava morto e revivieu), que, apesar de nascer livre, foi capturado aos sete anos e foi escravo do Padre Jesuíta Antônio Melo em Porto Calvo, com quem aprendeu português, latim, álgebra e religião. Contudo,aos 15 anos, fogiu para o Quilombo dos Palmares, onde, dez anos depois (1625), se torna chefe. Com genial senso de estratégia conseguiu defendê-lo das investidas portuguesas que, mas, no dia 20 de novembro de 1695, é traído e entregue aos seus inimigos que o degolaram.
Zumbi é um homem que reconheceu que estava morto na vida junto ao Padre Antônio Melo e passou a viver, quando encontrou a liberdade. Entretanto é a liberdade capaz de nos dar a verdadeira vida? O homem pode ser livre?
A filosofia existencialista do francês Jean Paul Sartre (1905-1980) pregava: “o homem está condenado a ser livre”. Contudo o escritor grego Homero (IX a.C.), na Ilíada foi grandemente usado pela graça comum quando fala pela boca do herói Ulisses: “muita gente a mandar não parece bem; um só chefe, um só rei, é o que mais convém”.
A liberdade é um sonho vão do ser humano, porque sempre está aprisionado em algum grilhão, santo ou vil, virtuoso ou corrupto independente de suas escolhas, porque jamais consegue escolher plenamente sobre uma questão, pois, desde que, no Éden, nossos primeiros pais perderam o livre-arbítrio, somos, como afirma Lutero a Erasmo de Roterdã, quais pedras que não conseguem fazer nada mais que cair, pois nosso coração corrupto e enganoso (Jr 17.9), assim como a gravidade, nos puxa, continuamente, para o que não é capaz de nos edificar e agradar o Senhor. Todas as boas ações tanto do crente, quanto o ímpio são assistidas pela graça. Dessa maneira, o homem nasceu não para a liberdade, mas para a escravidão ou a Deus ou ao diabo.
John MacArthur, na obra Escravo: a verdade escondida sobre nossa identidade em Cristo, entende que houve um erro não intencional na tradução a palavra grega doulos (δολος), que originalmente significa escravo para servo. Parece que a diferença entre elas é mínima, mas é fácil perceber que enquanto o servo conserva em alguma medida de autonomia, o escravo é propriedade de alguém a quem deve procurar servir da melhor maneira possível.
MacArthur entende que esse equívoco tem contribuído para a confusão quanto o ensino e prática do evangelho, porque aquele que não quiser apenas servir a Cristo conservando, em certa medida seus gostos e preferências, jamais conseguira viver satisfatoriamente a vida cristã àquele que dá a seguintes ordens a quem deseja segui-lo: negue-se a si mesmo, e tome a sua cruz, e siga-me (Mc 8.34b).
Segundo Coenen e Brown, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, o doulos não pertencia a si mesmo, mas a outra pessoa, por isso, quando Paulo, Tiago ou Pedro chamam a si próprio (Rm 1.1; Tt 1.1; Tg 1.1; Jd) ou outras pessoas (Cl 4.12) de doulos de Jesus, eles não estão se identificando como meros servos, mas como pessoas que não têm vida própria, mas pertencem aquele que os libertou do império das trevas para a vida eterna.
MacArthur defende que foram dois os motivos que levaram os tradutores das edições inglesas no séc. XVI a traduzir algumas vezes doulos por servo:
·   O termo escravo estava muito ligado à escravidão ocidental negreira. Os tradutores não queriam ligar a relação do cristão com Cristo a essa marca vergonhosa de nossa história claramente condenada nas Escrituras (Êx 21.16; 1Tm 1.10);
·   A escravidão no séc. XVI não tinha nenhuma relação com o contexto dessa no primeiro século.
No primeiro século, cerca de 12 milhões de pessoas eram escravas (um quinto da população) no Império e a vida dessas pessoas podia ser avaliada pela perspectiva de quem era seu mestre/senhor. Servir um senhor cruel era terrivelmente perigoso. O filósofo romano Sêneca (4-65 d.C), no discurso Sobre a Futilidade da Ira, conta a história de um homem muito rico, chamado Vedius Pollio, que tinha prazer em jogar escravos vivos no seu lago de peixes carnívoros a fim de ver estes devorando aqueles. Entretanto era muito bom servir um senhor bom. Os escravos de senhores renomados tinham um certo destaque na sociedade por causa da posição a quem pertenciam. Era comum que escravos mandassem gravar nas suas lápides, com detalhes, o nome dos seus senhores.
Não há como ser livre, pois o se é escravo de Jesus ou do diabo (Jo 8.34; 1Jo3.8). Aquele que serve o pecado pode acreditar que é livre e vive a vida com prazer, mas só pensa assim, porque estão cegos e mortos em suas práticas vis (2Co 4.4; Ef 4.18). A vida pautada pelas regras do mundo parece trazer uma variedade de senhores, mas na verdade apresenta apenas um tirano cruel e sanguinário.
O crente é aquele que sabe que poderia viver muito mais seguro e abastado nos limites do mundo e seus prazeres, mas fugiu de suas regalias para viver perseguido e pronto para dar sua vida, porque sabe a quem pertence e a recompensa que ganhará por sua fidelidade na glória.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

O que é pecado para a morte?

O que é pecado para a morte?

“Se alguém vir a seu irmão cometer pecado não para morte, pedirá, e Deus lhe dará vida, aos que não pecam para morte. Há pecado para morte, e por esse não digo que rogue”. (1João 5.16)

Segundo Carson et al (Introdução ao Novo Testamento, 1997, p.500) a Primeira Epístola de João (o evangelista filho de Zebedeu) foi escrita no início dos anos 90, quando estava em Éfeso, com o propósito, segundo Gundry (Panorama do Novo Testamento, 1981, p. 401), de “fortalecer seus leitores no conhecimento, na alegria e a na certeza da fé cristã (1Jo 1.3,4 e 5.13), em contraposição ao falso doutrinamento (1Jo 2.1 e 4.1)”.
Enquanto, nas outras duas epístolas, João apresenta claramente seus destinatários (na segunda, “à senhora eleita e aos seus filhos” (2Jo 1.1)e, na terceira, Gaio (3Jo 3)), na primeira, não há um destinatário específico, tampouco uma saudação específica. Contudo, segundo Ladd (Teologia do Novo Testamento, 2003, p.812) reconhecemos que se trata de igrejas que foram atingidas pela ação de falsos profetas (1Jo 4.1), que vinham promovendo cisma (1Jo 2.19) e reivindicavam uma iluminação especial (1Jo 2.20,27).
A partir de 1João 1.8-10, Ladd defende que esses falsos profetas entendiam que atingiram “um estado superior à moralidade cristã comum” e, por isso, alegavam não ter mais pecado. Nesse momento do primeiro século, havia um gnosticismo nascente (o gnosticismo só se tornou um movimento religioso no segundo século), o qual, segundo Lopes (Primeira Carta de João, 2004, p.12), afirmava que o espírito é bom e o corpo é mau, nessa perspectiva dualista, “a salvação consiste em a alma fugir da prisão que é o corpo, e isto se consegue por meio de um conhecimento (gnosis) secreto e especial”.
Essa doutrina gnóstica embrionária levava ao docetismo (heresia que acreditava que Jesus era apenas Deus/espírito e apenas pareceia (o vergo grego dokeo=parecer) homem, assim como a conduta moral distorcida.
Os gnósticos se dividiam entre aqueles que viviam uma vida ascética e austera eliminando tudo que fosse material (tudo o que é secular é mau) e entre aqueles que entendiam que o pecado era essencialmente material e manchava apenas o corpo não afetando o espírito.
Assim como nos nossos dias João vivia em uma sociedade pagã que buscava de forma desenfreada “a satisfação dos prazeres sensuais” (Ladd). Para esse contexto pré-gnóstico, João combate o antinomismo (achar que não se precisa seguir a lei de Deus), mostrando que afirmar não ter pecado é fazer Deus mentiroso (1Jo 1.8). Indica um caminho ao pecador: e aquele que pecou pode confessar seus pecados sabendo que Deus perdoa e purifica (1Jo 1.9). Como afirma Lopes (Primeira Carta de João, 2004, p.42), assim como David (Sl 51.2), os verdadeiros crentes, quando se vê prostrado pelo pecado, “desejam ardentemente ser purificados, lavados e limpos por meio do perdão de Deus”. Dessa maneira, João afirma que o pecado é a transgressão da lei (1Jo 3.4). Há quem possa argumentar que se nossa salvação é pela graça qual o valor que as leis têm para nós, contudo as leis do Antigo Testamento, sobretudo as morais (os dez mandamentos da Lei) “não são contrários a graça do Evangelho, mas suavemente se harmonizam com ela, pois o Espírito de Cristo submete e habilita a vontade do homem a fazer livre e alegremente aquilo que a vontade de Deus, revelada na lei, requer que se faça” (CFW, XIX, 7. Veja Gl 3.21; Ez 36.27, Hb 8.10)
Parece que ao afirmar que escreve para que os destinatários não pequem (1Jo 2.1), que pecador é do diabo (1Jo 3.8) ou que o que é nascido de Deus não peca (1Jo 5.18). João não está se contradizendo, antes defende que o regenerado não pode continuar com a vida mundana que outrora levava. Dessa maneira, João mostra que aquele que está em Cristo (o eleito) não vive na prática de pecado, mesmo que lute contra ele (1Jo 3.6). A Confissão de Fé de Westminster (CFW): “esta corrupção da natureza persiste, durante esta vida, naqueles que são regenerados; e embora seja ela perdoada e mortificada por Cristo, todavia tanto ela como os seus impulsos são reais e propriamente pecado” (VI, 5)
O membro de igreja que após a sua conversão vive uma vida dupla ou em uma vida condumaz de iniquidade equivocou-se quanto a sua regeneração e precisa passar pelos passos de Mateus 18.15-20. Nesse caso, essas pessoas que viviam em pecado eram aquelas que acreditavam que a igreja servia apenas para a salvação de suas almas e que seus corpos poderiam ser entregues ao pecado sem dano algum.
Sabendo que 1João 5.13-21 é um resumo de toda a epístola, vemos que João mostra que existem dois tipos de pecado: o que não é para a morte e o que é para a morte. De forma alguma, se pode ver nesse versículo a antiga ideia romana de pecado venial e mortal ou leve e grave, pois, apesar do salário do pecado ser a morte (Rm 6.23), só há um pecado que não tem perdão, a apostasia (Mc 3.29), por isso, só se reconhece aquele que peca para a morte não a partir de uma atitude, mas de um amplo conjunto delas.
Segundo Gundry (Panorama do Novo Testamento, 1981, p. 402) o pecado para a morte de 1 João 5.16,17, “provavelmente alude à apostasia definitiva, sobre o que somos advertidos na epístola aos Hebreus e na qual vinham caindo os mestres gnósticos, com o resultado de uma irrevogável condenação”. Calvino (Comentário das Epístolas Gerais, 2015, p.486) entende que esse pecador, cuja impiedade parece estar destituída de esperança não merece a intercessão da igreja, como se essa quisesse ser mais misericordiosa que Deus. Orar para a conversão do apóstata é tão impensável quanto orar pela conversão de Satanás.
Portanto, não podemos interpretar adequadamente 1 João 5.16,17 distante do contexto da Primeira Epístola de João. O Apóstolo estava lidando com o problema da apostasia, motivada pelo início do gnosticismo, ou seja, existiam irmão da igreja que, com a pretensa autorização do Espírito Santo viviam uma vida dissoluta, enquanto outros lutavam contra o pecado e se mantinham fieis a cristo. Estes pecam, mas não para a morte (entenda morte como morte espiritual, eterna, condenação final) e a esses a igreja devia orar, mas aqueles e todos os que os seguiam pecavam para a morte e a estes a igreja não devia orar. João está mostrando que a nossa congregação deve estar preocupada com seus membros e aqueles que estão com a Palavra desembanhada no campo de batalha e não se preocupar com as muitas baixas, porque tudo está debaixo da soberania de Deus.

sábado, 7 de novembro de 2015

A SOBERANIA DE DEUS E A LIBERDADE HUMANA


A soberania de Deus e a liberdade humana
“Eu formo a luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu, o SENHOR, faço todas estas coisas”. (Isaías 45.7)
Quando se ouve manchetes como essas: “desmoronamento mata jovens em festa”, “Egito sofre terrível crise climática”, “jovens vendem irmão mais novo para servir de escravo em terras estrangeiras”, “governante, por vaidade, embarga saída de povo estrangeiro de seu país”. Geralmente, se acredita que os males que nos cercam procedem do homem, do diabo ou do acaso, pois se acredita que o Deus que é amor de 1João 4.8 não seria capaz de provocar tais incidentes. Entretanto, na tentativa inútil e indevida de preservar-lhe a bondade, legam ao Senhor um lugar inferior no universo, onde não pode agir se não pela autorização dos humanos, que criara.
Assim como uma criança não tem a experiência necessária para entender muitas atitudes de seus pais. Essa triste realidade se deve ao fato de medirmos o Senhor pela infantilidade de acreditar que os céus estão em nosso patamar, assim como os caminhos e pensamentos do Senhor, mas eles não são (Is 55.8,9).
Arthur W. Pink (Deus é soberano, 2002, p.16) afirma: “o homem de fé inclui Deus em tudo, encara tudo do ponto de vista de Deus, calcula os valores segundo os padrões espirituais e contempla a vida à luz da eternidade. Agindo assim, recebe o que lhe sobrevier como provindo das mãos de Deus. Fazendo assim, seu coração mantém-se calmo em meio à tempestade e regozija-se na esperança da glória de Deus”.
Lutero dizia que “o Diabo é o Diabo de Deus”, ou seja, os demônios não podem agir segundo suas próprias vontades. Vemos essa realidade, com grande clareza no livro de Jó (1.11;2.5). Os filhos de Jó não morreram pela imperícia dos engenheiros, tampouco pelas forças climáticas ou o desejo pernicioso de satanás (Jó 1.19), mas por causa da vontade soberana de Deus. Segundo J.I. Packer (Teologia Concisa, 2004, p. 66), “o exército de demônios de Satanás usa também estratégias mais sutis, ou seja, o embuste e o desânimo em suas formas. A oposição a esses artifícios é a essência do combate espiritual (Ef 6.10-18)”. Satanás ainda pode criar transtornos, mas nunca impedir que a vontade do Soberano seja feita, porque ele não passa de um inimigo já derrotado (Ap 20.10).
Os céticos, que eliminaram toda a ação sobrenatural do nosso mundo, acreditam que tudo está fadado ao acaso. Tais pessoas não pedem a ajuda do Senhor ao sair dos seus lares, mas acreditam que os editoriais e previsões climáticas serão capazes de orientá-los diante dos problemas da vida. O Egito passou por terríveis pragas, mas em todas elas estava presente a ação sobrenatural de Deus. Quando Jesus aclama a tempestade no mar da Galileia os seus discípulos ficaram possuídos de terror e admiração frente ao Senhor que controla o que, ao homem, é incontrolável (Lc 8.24,25).
Uma forma de conciliar a bondade de Deus e a existência do mal neste mundo é o livre-arbítrio. R.C. Sproul (Eleitos de Deus, 2009, p.39) define livre-arbítrio como “a capacidade de fazer escolhas sem nenhum preconceito, inclinação ou disposição anteriores”.
O homem foi dotado, por Deus, com liberdade de querer sem que pudesse ser influenciado nem para o bem ou para o mal. Adão e Eva possuíam livre-arbítrio no estado de inocência (antes da queda), todavia, após a queda perderam“totalmente a capacidade da vontade quanto a qualquer bem espiritual que acompanhe a salvação (Rm 5.6; 8.7; Jo 15.5)” (Confissão de Fé de Westminster IX, 3). Dessa maneira, como afirma Jonathan Edwards (in SPROUL, R.C, Eleitos de Deus, 2009, p. 41), “a vontade sempre escolhe de acordo com sua mais forte inclinação no momento”. Pink (Deus é soberano, 2004, p.108), na mesma linha, afirma: “qualquer dessas forças motivadoras que exerça a influência maior e que seja mais poderosa sobre o próprio indivíduo é a que impulsiona a vontade da ação”. Nada pode se fazer pra ser salvo, pois nossas melhores obras são imundas para Deus (Is 64.6), assim como somos salvos pela graça (Ef 2.8,9). Alguém poderia perguntar: então posso pecar a vontade, se eu for eleito estará tudo bem, mas Paulo afirma que ninguém que vive em Cristo pode voltar para o pecado (Rm 6.1,2).
O livre-arbítrio é impossível, porque somos escravos de nossas vontades pecaminosas e, para vencê-las é necessário a ação da graça. Pink (Deus é soberano, 2004, p. 109) afirma: “se a vontade é controlada, ela não é soberana nem livre, sendo apenas uma serva da mente”. Os irmãos de José estavam tomados pelo ciúme (Gn 37.4), por isso, já não refletiam adequadamente (Gn 37.20) e a atitude em vende-lo as ismaelitas não foi arbitrária, mas escrava dos sentimentos pecaminosos de seus corações (Gn 37.28). O que eles fizeram foi errado e o próprio José reconhece isso (Gn 50.20), mas ao mesmo tempo é controlado por Deus. J.I. Packer (A evangelização e a soberania de Deus, 19) afirma: “o homem é um agente moral reponsável, ainda que seja, ao mesmo tempo também, controlado pela divindade, o homem é divinamente controlado, embora seja também, um agente moral responsável”.
A soberania de Deus e a liberdade humana não são parodoxais (realidades que não podem ser conciliadas), mas antinômios (realidades que caminham em conjunto). Deus nunca foi surpreendido pelo pecado do homem, tampouco tem parte com ela, mas pode usa-lo para sua glória. O que os irmãos de José fizeram foi pecado, todavia muitas pessoas sobreviveram, porque o penúltimo filho de Jacó estava nas terras egípcias no momento estabelecido por Deus.
Se “Deus é quem efetua em nós tanto o querer como o realizar, segundo a sua vontade” (Fl 2.13), quando Deus endurece o coração de Faraó (Êx 4.21; 7.3; 14.4; 14.17) o está fazendo mais pecador? Deus não colabora com o seu pecado, mas, apenas, não o refreia. O endurecimento do coração de Faraó é apenas deixa-lo da maneira como sempre foi.

Entendemos, em Isaías 45.7, que Deus faz todas as coisas, inclusive o bem e o mal, como afirma William Edgar (Razões do coração, 2000, p.118-120), nem sempre entenderemos sintuações adversas, mas que “todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus” (Rm 8.28); essas circunstâncias sempre vão, em última instância, servir a glória de Deus; Jesus veio solucionar, definitivamente o problema do mal.

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

CALVINO: DITADOR OU REFORMADOR?


Calvino: ditador ou Reformador?
Calvino é uma figura mal compreendida, porque, devido a grande influência católica romana de nosso país, é pintado como um ditador que misturou a sã pregação da Palavra a uma busca desenfreada por domínio político usando de sua posição para calar seus inimigos. Dom Estevão Tavares Bettencourt O.S.B. (1919-2008), proeminente teólogo da igreja de Roma do séc.XX, transmite essa ideia quando afirma: “em 1555, Calvino havia conquistado vitória sobre todos os seus inimigos. Nenhum pode mais lhe abalar a posição de ditador religioso, e também político, na sua ‘Roma protestante’, para onde afluíam os emigrados protestantes da França, da Itália e da Inglaterra” (Crenças, religiões, igrejas e seitas: quem são?, 1995, p. 31).
A fé romana equivoca-se ao afirmar que Lutero foi o precursor da Reforma Protestante do séc. XVI. De fato, o “o destino de Martinho Lutero e o da Reforma se tornaram inexoravelmente ligados, de modo que, agora, tentar imagina a Reforma sem Lutero é como pensar o cristianismo primitivo sem Paulo” (Timothy George, Lendo as Escrituras com os Reformadores, 2015, p.136), todavia não podemos esquecer que antes do Reformador alemão a igreja contou com homens como John Wycliffe (1320-1384), John Huss (1369-1415) e Savonarola (1452-1498). O historiador Alderi de Souza Matos (Fundamentos da Teologia Histórica, 2008, p.155) afirma que “se Zuínglio foi o fundador da tradição reformada, João Calvino, nascido na pequena Noyon, no nordeste da França, foi seu grande consolidador e defensor”.
Uma boa resposta a crítica mordaz de Dom Estevão a Calvino como o Papa da Roma Protestante estaria na descrição que Montegomery Boice (in Steve Lawson, A Arte Expositiva de João Calvino, 2012, p. 15), faz do Reformador de Genebra: “Calvino não tinha outra arma senão a Bíblia [...]. Ele pregava a Bíblia todos os dias, e, sob o poder desta pregação, a cidade começou a ser transformada. Conforme o povo de Genebra adquiria conhecimento da Palavra de Deus e era transformado por ela, a cidade tornou-se, como John Knox chamou-a mais tardem uma Nova Jerusalém, de onde o evangelho espalhou-se para o resto da Europa, para a Inglaterra, e para o Novo Mundo”.
Sobre esse poder avassalador da Palavra Lutero afirma: “Veja meu exemplo. Eu me opus às indulgências e a todos os papistas, mas nunca pela força. Simplesmente ensinei, preguei, escrevi a Palavra de Deus. De outro modo, não fiz nada. E, então, enquanto dormia ou bebia cerveja em Wittemberg, com meus amigos Phillip e Amsdorf, a Palavra enfraqueceu tanto o papado que nunca um príncipe ou imperador conseguiu lhe causar tanto dano. Eu não fiz nada. A Palavra fez tudo” (in Timothy George, Lendo a Bíblia com o Reformadores, 2015, p.16)
Seria um terrível equívoco, até mesmo aos romanistas, comparar Roma a Genebra e Calvino ao Papa, pois, nas entrelinhas, está se admitindo que a postura papal de infalibilidade só é tolerada pelo amontoado de argumentos humanos supersticiosos que entorpecem as mentes áridas pela água pura da Palavra de Deus.
Genebra era governada por quatro síndicos que eram eleitos pelo voto. Esses cidadãos controlavam não só os negócios temporais (como a condenação do herege Serveto), mas os religiosos (já que o Estado não era laico). Segundo o historiador Rev. Alderi de Souza Matos Calvino jamais exerceu cargos políticos em Genebra e muito menos foi o ‘ditador’ daquela cidade. Na realidade, durante a maior parte do seu ministério, ele teve um relacionamento difícil com as autoridades civis”.
De fato, se Calvino fosse um ditador, deveria ter implantado a celebração contínua da Ceia, porque assim compreendia Atos 2.42. Como déspota teria êxito, quando em 1537, decidiu restringir o acesso a Ceia (que era mensal) àqueles que não tinham uma vida condizente, assim como obrigar os moradores de Genebra a ouvir os sermões pregados (Alister McGrath, A vida de João Calvino, 2004, p.121). George afirma que os Conselhos municipais recebiam amigavelmente o movimento evangélico, pois queriam expandir suas liberdades frente a autoridades como imperadores, bispos ou reis, mas, diante de mudanças radicais, tendiam a limitar os avanços (Timothy George, Lendo as Escrituras com os Reformadores, 2015, p.173).
Na páscoa de 1538, Calvino e Farel foram expulsos de Genebra e, finalmente, aquele completou sua viagem a Estrasburgo, mas ficou sossegado apenas até 1941, pois o Cardeal Sadoleto começou a investir no retorno de Genebra para a fé Romana. Como o Conselho não possuía uma pessoa a altura de Calvino para enviar uma resposta chamou Calvino que reage da seguinte maneira em carta a Pedro Viret: “certamente, não foi sem um sorriso que li o trecho de sua carta em que se mostrou tão preocupado com minha saúde que me recomendou, com base nisso, Genebra! Por que não me recomendou logo a cruz? Pois seria muitíssimo preferível morrer de uma vez a ser, novamente, enviado a esse lugar de tormento”. O pastoreio em Genebra foi tão traumatizante que o vê como uma tortura, mas, pouco tempo depois, escreve a Willian Farel: “conquanto eu não seja ardiloso, não me faltariam pretextos pelos quais pudesse, astutamente, me esquivar de maneira a justificar-me diante dos homens, mostrando que não houve erro da minha parte. No entanto, tenho plena consciência de que é com Deus que tenho de tratar, à vista do qual não se sustentam tais artifícios da imaginação”.

Vemos, nesses trechos, dessas duas Cartas de Calvino, que ele está disposto a ir para um lugar de tortura, um lugar que seria preferível à morte e, que denegrirá sua saúde, não para obter os benefícios humanos (ele os tinha em Estrasburgo), mas única e exclusivamente para cumprir com a vontade de Deus. Segundo Lawson (A arte expositiva de João Calvino, 2012, p. 25), chegou, novamente, em Genebra no dia 13 de setembro de 1541 e ele que pregava em sequência (verso por verso, semana após semana), ao reassumir o púlpito, que fora obrigado a deixar há três anos, tomou a Bíblia e ao invés de fazer um sermão que exortasse as pessoas para a injustiça que acontecera com ele, apenas continuou a pregar do texto que havia parado na sua última pregação. Esse, de fato, não é um ditador, mas um Reformador.

sábado, 24 de outubro de 2015

O batismo com o Espírito Santo e com o fogo


O batismo com o Espírito Santo e com o fogo
Adotando a postura de Calvino e Berkhof de que o batismo joanino e o cristão são essencialmente idênticos, cabe salientar as características do batismo empreendido, hoje, pela igreja de Jesus Cristo. O próprio Batista afirma: Eu vos batizo com água, para arrependimento; mas aquele que vem depois de mim é mais poderoso do que eu, cujas sandálias não sou digno de levar. Ele vos batizará com o Espírito Santo e com fogo” (Mt 3.11).
O contexto desse versículo é útil para entendê-lo. Em Lucas, esse mesmo versículo é recorrente à expectativa do povo de que João fosse o Cristo (Lc 3.15. Veja Jo 1.19, 20; 3.25-36). Por isso João afirma que viria outro que seria tão grande que não lhe caberia sequer o serviço do escravo, ou seja, levar as sandálias.
Evidentemente, o batismo cristão tomou o mesmo sinal externo que João utilizava, a água, assim como, a disposição daqueles que o recebem. Alguns podem se perguntar: Como as crianças podem vir a esse sacramento se não conseguemem, como os adultos, manifestar o mesmo arrependimento?
Calvino entende que o batismo é equivalente à circuncisão, sendo o sacramento da fé e do arrependimento (Rm 10. 10-12), por isso, afima: “que se questione a Deus, então, pedindo-lhe a razão pela qual Ele ordenou que fosse aplicada aos pequeninos”.
A.A. Hodge, comentando a Confissão de Fé de Westminster, entende que as crianças pertenciam a igreja do Velho Testamento tendo a circuncisão como porta de entrada. Da mesma forma, “visto que o batismo assumiu o lugar da circuncisão – segue-se que a membresia eclesiástica de filhos de pais professos deve ser reconhecida como era outrora, e que os mesmos devem ser batizados”. Essa ordenança só poderia ser desconsiderada se Jesus, no Evangelho retirasse dos infantes o direito hereditário de pertencer a igreja.
O batismo no Espírito Santo entre os pentecostais, segundo F.D. Bruner (Teologia do Espírito Santo, p. 50,51), é o pleno recebimento do Espírito Santo, o que é distinto da regeneração e subseqüente a ela, é evidenciado por falar em línguas e deve ser buscado com sinceridade.
Lembro-me de ouvir um pregador pentecostal explicando essa doutrina com uma ilustração, no mínimo peculiar: arregaçou as mangas de sua camisa e molhou seu braço com água e pediu para um diácono muito forte tentar segura-lo, o que fez com êxito. Diante desse fato afirmou: “esse é o batismo com água, nele, ainda estamos vulneráveis a satanás”. Em seguida, mergulhou seu braço no óleo e pediu para o mesmo diácono detê-lo, mas, agora, sem o mesmo sucesso e, por isso, disse: “esse é o batismo no Espírito Santo, satanás não consegue pegar”.
O povo judeu esperava esse batismo no Espírito como podemos ver em Ezequiel 36.25-27;39.29 e Joel 2.28. Segundo Hendriksen, essa realidade mostra que há uma diferença qualitativa entre Jesus e o Batista, assim como “o infinito e o infinito, o eterno e o temporal, a luz original do sol e a luz refletida da lua (jo 1.15-17)”. Calvino entende que apenas Jesus, doador do Espírito, pode dar a graça interna que estava figurada externamente no batismo de João, ou seja, é ele quem outorga o espírito de regeneração. O batismo do Espírito não pode ser uma experiência posterior a conversão, porque o simples fato da pessoa entender-se pecador e necessitado do perdão em Cristo mostra que houve a ação miraculosa do Parácelto no seu interior (Jo 16.8). Portanto, ao recebermos o sacramento do Batismo com água (parte externa), há no mesmo instante a administração do Espírito (parte interna do sacramento) e, por que não dizer també o fogo (a santidade).
Tendo em vista que o fogo é aquilo que destrói e consome (Ml 4.1), entendemos que esse elemento, que caracteriza o batismo de Jesus em Mateus 3.11 é a ação destruidora de Deus. Calvino afirma: a palavra fogo é adicionado como um epíteto, e é aplicado ao Espírito, porque ele tira os nossos corrupções, como o fogo purifica o ouro”. Para o Exegeta da Reforma, há um único batismo que regenera (Espírito Santo) e purifica dos pecados (Fogo). Calvino entende o fogo com o poder de limpar, porque faz paralelo entre Mateus 3.11 e João 3.5 e compreende que o Senhor compara o fogo dito por João (em Mt 3.11) a água (dito por Jesus a Nicodemus em Jo 3.5).
Segundo Timothy George, uma das grandes descobertas de Lutero ao ler o Novo Testamento interlinear de Erasmo foi entender que Jerônimo havia traduzido Mateus 3.2 de maneira errada. O grande tradutor da Vulgata havia entendido o termo Μετανοετε - matanoeite (arrependei) por paenitentiam agite (fazei penitência). A partir dessa constatação, Lutero percebe que a ënfase de João (Mt 3.2,11) não está em um conjunto de atitudes que almejam perdoar pecados, mas em uma mudança do coração. Dessa maneira, como disserta Rienecker a vida cristã envolve o arrependimento, que leva a conversão, evento único, a qual, por sua vez leva a vida de santidade, ou seja, continuamente deixar o mundo. Dessa maneira “O Espírito e o fogo são o elemento da nova vida que continuamente julga e purifica, como também continuamente aquece e promove a vida.”.
Há quem defenda que, em Mateus 3.11, há dois batismos do Espírito Santo dado por Jesus aos crentes colocando-os no seu celeiro (o céu) (Mt 3.12a) e o do fogo aos ímpios dado pelo mesmo Jesus colocando-os no fogo inextinguível (o inferno) (Mt 3.12b). Essa não deixa de ser uma proposta plausível, mas que não se harmoniza ao correspondente sinótico de Marcos 1.7,8 e, especialmente o de Lucas 3.1-5-17.



sábado, 17 de outubro de 2015

O BATISMO DE JOÃO



O batismo de João
O batismo e a ceia são os dois únicos sacramentos ordenados pelo Senhor. Segundo a Confissão de Fé de Westminster (CFW, XXVII,1): “os sacramentos são santos sinais e selos do pacto da graça, imediatamente instituídos por Deus, para representar a Cristo e seus benefícios e para confirmar nosso interesse nele, bem como para fazer diferença visível entre os que pertencem a igreja e ao restante do mundo, e, solenemente, compromete-los no serviço de Deus em Cristo, de acordo com sua Palavra”.
Os sacramentos possuem duas partes: um sinal externo e sensível ( no batismo, “o elemento exterior usado é a água com a qual a pessoa é batizada em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo, por um ministro do Evangelho, legalmente chamado para tal fim”CFW, XXVIII, 2 ; na Ceia, o pão e o fruto da videira.), que não pode ser usado pela conveniência do homem, mas segundo a determinação de Cristo na Palavra, e a parte interna e espiritual (Breve Catecismo de Westminster, pergunta 163).
Segundo o Breve Catecismo de Westminster (pergunta 94), o batismo “é um sacramento no qual o lavar com água, no nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo significa e sela nosso externo em Cristo, nossa participação dos benefícios do pacto da graça e nosso comprometimento de pertencermos ao Senhor”.
O batismo está relacionado a circuncisão (Gn 17.9-14), ou seja o ato de colocar uma pessoa debaixo da aliança com o Senhor. Segundo Calvino (Institutas, vol. 3, p.169) o batismo e a circuncisão são semelhantes no fato de ambos sinalizarem a promessa da misericórdia, remissão dos pecados e vida eterna aquele que o recebe; na realidade simbolizada é a mesma, a purificação e a mortificação, assim como no fato de Cristo ser o mesmo fundamento da da circuncisão e do batismo. Por isso, esse sacramento pode ser administrado a crianças e adultos, não pode ser ministrado mais de uma vez (Ef 4.5) e não pode ser concedido sem critério algum, mas apenas aos convertidos que professam publicamente sua fé e arrependimento ou aos filhos dos pais crentes.
Apesar dessa ligação entre o batismo e a circuncisão os judeus possuíam ritos de purificação (Hb 9.10) e, segundo Laubach (Comentário Esperança de Hebreus, p. 54), os judeus costumavam batizar prosélitos baseando-se nos banhos de purificação levíticos (Lv 14.8; 2Rs 5.14). As religiões de mistério dos helenistas também possuíam ritos de purificação. O batismo empreendido por João nas águas do Jordão seguia esse molde de rito de purificação.
Há divergência na compreensão do batismo de João. A.A. Hodge, comentando a Confissão de Fé de Westminster (p.458,459), que o batismo de João é diferente do batismo cristão pelos seguintes aspectos: a.) João não é um apóstolo do Novo Testamento (Lc 1.17); b.) o seu batismo não era em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo; c.) seu batismo era para arrependimento e não para a fé em Cristo; d.) seu batismo não introduzia a comunhão da igreja como os apóstolos fizeram (At 2.41,47); e.) as pessoas batizadas por João foram rebatizadas (At 18.24-28; 19.1-5). A.A. Hodge entende que até mesmo o batismo empreendido pelos discípulos antes da crucificação (Jo 3.22; 4.1,2) não eram válidos.
Calvino (Institutas, vol. 3, p.156) defende que o batismo de João é essencialmente o mesmo que foi confiado aos apóstolos, pois ambos aceitavam a mesma doutrina: batismo para arrependimento e o ministravam para a remissão dos pecados. Berkhof (Teologia Sistemática, p.576) sobre o batismo cristão e aquele empreendido por João, afirma: “alguns acham que a prova da diferença essencial entre os dois está em At 19.1-6, qu,e segundo eles, registra um caso em que alguns que tinham sido batizados por João foram rebatizados. Mas essa interpretação está sujeita a dúvidas. O que parece correto é dizer que os dois são essencialmente idênticos (grifo nosso). De fato, não há indícios de que Apola fora rebatizado (At 18.25).
Calvino, defendendo que os tais de Atos 19.1-6, não foram rebatizados argumenta: “Se o primeiro Batismo fosse defeituosoa e nulob por causa da ignorância dos batizandos, devendo eles ser rebatizados, os próprios apóstolos teriam que ser os primeiros a ser batizados de novo, porque, após o Batismo, passaram três anos sem ter grande conhecimento da verdadeira doutrina.” (Institutas, vol.3, p.164).
Berkhof (Teologia Sistemática, p.576) entende que existem semelhanças entre o batismo de João e aquele oferecido pelos Apóstolos: a.) ambos foram instituídos pelo próprio Deus (Mt 21.25; Jo 1.33); b.) relacionavam-se a mudança radical de vida (Lc 1.1-17); c.) estabelecem uma relação com o perdão dos pecados (Mt 3.7,8; Mc 1.4; Lc 3.3) d.)usam do mesmo elemento material, a água. Contudo o batismo de João é diferendo do oferecido pela igreja, porque: a.) pertencia a antiga dispensação; b.) harmonizava-se com a dispensação da lei, mesmo se excluir a fé; c.) foi planejado para judeus; d.) “visto que o Espírito Santo ainda não fora derramado na plenitude do Pentecostes, o batismo de João o batismo de João ainda não era acompanhado por tão grande porção de dons espirituais como o batismo cristão”.
Se ambos batismos não são essencialmente diferentes, o de João é inferior ao empreendido pelos apóstolos, porque o batismo de João atinge apenas o externo, enquanto o de “Cristo é o autor da graça interna” (Institutas, vol.3, p.157). Portanto, de fato o batismo de João cessou não para dar lugar a algo inédito, mas algo maior, um batismo no Espírito e no fogo.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

O maior no Reino dos céus


O maior no Reino dos céus

“Se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus” (Mt 18:3)

Diferente do que pensava o filósofo iluminista Rousseau, a criança não é o bom selvagem, Davi afirma: Eu nasci na iniqüidade, e em pecado me concebeu minha mãe” (Sl 51.5), como interpreta Calvino, “o pecado, por natureza, penetra cada parte dele sem exceção”.
Na queda de nossos primeiros pais, perdemos nossa integridade original, porque “Adão não mantinha um caráter privativo e isolado, mas era representante de toda a humanidade [...] quando ele caiu, todos nós, juntamente com ele, perdemos nossa integridade original” (Calvino, Comentário dos Salmos) (veja Rm 5.19) de tal maneira que precisávamos de um novo Adão, que nos redimisse (1Cor 15.22), porque o “ofício [de Cristo] é restaurar o que perdemos em Adão, [Jesus] é para nós causa da vida e sua ressurreição é a substância e penhor da nossa própria ressurreição” (Calvino, Comentário de 1Coríntios).
Se a criança nasce com pecado, assim como a mais tenra víbora já carrega veneno mortífero em sua peçonha, a vida adulta não coloca o fardo da iniquidade sobre a criança que insiste em crescer, trilhando o caminho inverso de Peter Pan, mas oferece os subsídios necessários para desenvolvê-lo. Os discípulos de Jesus viam o Reino que se iniciava com o Messias (Mt 12.28), porque “a mola mestra do mundo é que todos querem subir ao poder e ao esplendor, a fim de superar e dominar os outros” (Rienecker)
O Reino inaugurado pelo Senhor não é deste mundo (Jo 18.36), tampouco segue os parâmetros de maior ou menor que os discípulos de Jesus estavam acostumados (Mt 18.1; Mc 9.33-38; Lc 9.46-48), mas como afirma João: o servo não é maior do que seu senhor, nem o enviado, maior do que aquele que o enviou ” (Jo 13.16). Diante da desorientação a respeito dos seus discípulos, Jesus passa a explicar quem é o maior no reino dos céus, por isso, toma uma criança pequena ou de colo (παιδον), que, segundo Carson, bem poderia ser de Pedro se a casa do capítulo 17 for dele (veja Mt 17.25; Mc 9.33).
Essa atitude não visa mostrar alguém em alto grau de pureza e falta de pecado, mas alguém humilde, pois aquele que se humilhar como esta criança, esse é o maior no reino dos céus” (Mt 18.4). O verbo humilhar (tapeinoo - ταπεινω), segundo Coenen Brown (Dicionário Internacional de Teologia do NT, 977) não significa se colocar mais baixo do que é, mas “deve-se saber, como criança, quão baixa é nossa condição diante de Deus”. Carson afirma: “A crianca e levantada como um ideal nao de inocencia, pureza ou fe, mas de humildade e de despreocupacao por posicao social”.
Os discípulos deveriam converter-se m nessa atitude pueril (de criança), na qual há uma humildade que esboça, segundo Rienecker, “modéstia e fraqueza; liberdade com quem cofiam e carência de amor”. Dessa maneira, o maior no reino dos céu é aquele que como uma criança não busca a arrogância como uma forma de defesa, tampouco se envergonham de suas limitações.
Cristo não nos convida à infantilidade, mas a uma vida regida por padrões diferentes como diz Paulo: Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando sou fraco, então, é que sou forte” (2Co 12.10). Uma vida cristã bem sucedida imita a maneira como a criança encara o mundo ao seu redor.

Nesse mês em que se comemora o dia das crianças é co’mum vermos nas redes sociais inúmeros perfis de pessoas crescidas, mas que querem lembrar o óbvio: já foram crianças e, por isso, adaptam e digitalizam fotos antigas. Quando esse mês passa dando lugar às propagandas de natal, esses perfis são trocados por outros. Enquanto o desejo de ser como criança no facebook dura apenas um mês Jesus mostra que ser como uma criança não deve ser um adereço, mas uma busca, porque se não vos tornardes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus” (Mt 18.3).

terça-feira, 6 de outubro de 2015

O QUE É IMPORTANTE PARA A IGREJA HOJE?


O que é importante para a igreja hoje?

Ele é como árvore plantada junto a corrente de águas, que, no devido tempo, dá o seu fruto, e cuja folhagem não murcha; e tudo quanto ele faz será bem sucedido” (Sl 1.3).

Se você perguntasse: “o que é uma boa igreja?” ou “o que minha igreja precisa para crescer?”. Com certeza as respostas seriam variadas como: uma boa estratégia de marketing, programações mais envolventes, um ministério de música profissional, etc. Todas essas intenções são boas e sinceras, todavia sem nenhuma exceção todas escolheram o caminho errado, pois todas acreditam que fazendo algo e até imitando o que o mundo faz pode se encontrar êxito. Não é à toa que vemos igrejas investindo mais em música do que em formação de membros ou em templos monumentais que em almas para o Senhor. Deveria ecoar em nossos ouvidos o imperativo de Jesus: “buscai primeiro o reino de Deus e sua justiça” (Mt 6.33a). Talvez no serviço do Reino haja muitas pessoas bem intencionadas, mas com uma escala de valores e, consequentemente, com uma agenda distorcida.
Os dois primeiros salmos da Bíblia formam a introdução de todo o livro de salmos que, segundo Futato (Interpretando os Salmos, 2011, p.54), pode ser considerado como “um manual de instruções para viver uma vida verdadeiramente feliz”. O primeiro salmo inicia como a expressão “bem-aventurado” (‘asrê -  אַ֥שְֽׁרֵי ou makarios (LXX) - μακριος), feliz e, com certeza, nos versos desse texto encontraremos não só como nossa igreja poderá crescer feliz, mas também, como nós poderemos ser mais felizes e realizados dentro dela.
O Salmista começa mostrando a complexa realidade do pecado: ele é um mal progressivo, silencioso e degenerativo. A relação do homem caído como pecado é equivalente, em muitos aspectos, a nossa relação com o mar. Tudo começa com brincadeira e diversão.Todos sabem dos perigos do mar e como ele é inconstante. Entretanto inúmeras pessoas morrem todos os anos vítimas de afogamento. Assim como ao nos embrenharmos nas águas acreditamos estar no controle e prontos para retornar à segurança da praia, todavia logo nos vemos vulneráveis e entregues a uma força maior do que a nossa.
Semelhantemente, o pecado começa quando nos guiamos pelos conselhos dos ímpios, logo nos detemos à prática deles e, quando menos percebemos, estamos no mesmo procedimento desastroso. É óbvio que, pela graça comum, podemos extrair valiosos ensinamentos do mundo ao nosso redor, contudo sempre é uma tentação utilizarmos tais contribuições sem o filtro das Escrituras, incorporando-as sem critério algum no culto e na vida da igreja.
O salmista utiliza duas metáforas para caracterizar o justo e o ímpio: a árvore e a palha. Aquela é boa enquanto fincada no solo e melhor ainda se com uma boa fonte de água, esta nunca está em um mesmo lugar, mas, utilizando-se da vontade do vento penetra todos os ambientes trazendo sempre incômodo e sujeira.
Assim como a árvore é boa enquanto exerce a função para a qual foi criada, a igreja feliz e o justo são felizes enquanto exercem o propósito para os quais foram criados, ou seja, “glorificar a Deus e se alegrar nEle para sempre” (BCW). Dessa maneira, não perseguem os “modismos” de nossos dias, tampouco se valem de muitas programações para angariar membros, antes têm prazer na lei/Palavra do Senhor e, por isso, continuamente a meditam.
O termo hebraico הָגָה (haga – meditar), no Antigo Testamento, não tem a mesma conotação que as religiões orientais lhe atribuem, mas se trata de murmurar algo, trazer a memória um texto bíblico, como afirma o putitano John Owen (): “Por meditação, eu quero dizer pensar sobre alguma questão espiritual e divina, fixando, forçando e ordenando os pensamentos sobre isso, com o propósito de afetar o próprio coração quanto a isso”. Na imagem pintada pelo autor, essa relação com a Palavra está para o homem e a igreja, assim como a água corrente (contínua) está para a árvore, ou seja, para ambas são vitais. A corrente de água, que refrigera e abastece o cristão, não é um córrego pronto para secar, mas o próprio Jesus Cristo que disse à Samaritana: aquele, porém, que beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe der será nele uma fonte a jorrar para a vida eterna” (Jo 4.14).
Na metáfora proposta pelo salmista, o justo e a igreja feliz não têm frutos o tempo todos, mas existe a promessa de que no tempo certo, ou seja, quando eles forem requeridos pelo Senhor serão apresentados de forma satisfatória.
Dessa maneira, não há problema algum em zelar pela qualidade musical dos cultos, tampouco em organizar grandes eventos ou ampliar a divulgação dos trabalhos semanais, mas essas estratégias não podem esconder, nem diminuir aquela que é mais necessária: buscar a Palavra com insaciável interesse, porque não há outro lugar pelo qual o Senhor fala ao seu povo, assim como oferece o melhor lugar para forjar o caráter do cristão.

Às vezes, aos olhos do mundo, se a igreja não tiver uma ação social forte ela não term uma razão prática para existir. A igreja pode ter um bom trabalho assistencial, mas sua existência só se justifica se seu maior intento for pregar a Palavra com fidelidade, porque só assim suas folhas não murcharão e tudo quanto fizer (inclusive as áreas adjacentes como programações, propagandas, música ou assistência social) serão sucedidas.

domingo, 13 de setembro de 2015

O CONHECIMENTO PELA INJUSTIÇA



O conhecimento de Deus pela injustiça
Em certo aconselhamento, alguém me disse que determinada amiga pulava todos os versículos que falavam da ira de Deus, porque, na concepção dela, um Deus que é amor (1Jo 4.8) não combina com um Deus capaz de se irar. Contudo Paulo afirma: A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça (Rm 1.18). Como conciliar um Deus amoroso, mas capaz de se iriar?
Geralmente, as pessoas atribuem sentimentos humanos a Deus, mas essa é uma incoerência grave, porque Deus não possui paixões como nós a possuímos. Paulo, à multidão de Listra que queria adorar a ele e Barnabé como deuses, afirma que era homem sujeito aos mesmos sentimentos que os homens (At 14.15), porque Deus não pode ser surpreendido pela decepção ou a alegria frente a alguma coisa, por, sendo onisciente (conhece todas as coisas), não há nada que está velado para ele.
Deus não se arrepende ou fica irado como um ser humano, mas a Bíblia utiliza esses termos como (antropopatia) uma maneira de fazer a Palavra compreensível. Todo sentimento que atribuímos a Deus servem para a sua glória.
A ira do Senhor tem um alvo específico: a impiedade e perversão/injustiça dos homens. O primeiro adjetivo revela uma realidade interna do coração, enquanto a segunda indica uma consequência da impiedade. Essa realidade de ira existe, porque tais homens detêm a verdade pela injustiça.
Esses homens ímpios e injustos detêm a verdade, porque Deus revelou (Rm 1.19), pela revelação geral (Rm 1.20) com a finalidade de glorificarem e darem graça ao Senhor. No Areópago, Paulo afirma que os atenienses eram “acentuadamente religiosos” (At 17.22), mesmo que tenha ficado outrora revoltado frente ä idolatria dominante (At 17.16). Paulo mostra que essa preocupação teológica dos gregos era uma busca rudimentar por Deus (At 17.27). Citando Cícero, Calvino afirma: como os próprios pagãos confessam, não existe nação tão bárbara, nenhum povo tão selvagem que não tenha impressa no coração a existência de algum Deus”.
Os pagãos buscam a Deus pela revelação geral, ou seja, conseguem observar de forma clara os atributos invisíveis de Deus, o seu eterno poder e a sua própria divindade (Rm 1.20), todavia esse conhecimento é insuficiente para a salvação, mas apenas faz esses homens indesculpáveis, porque “a manifestação de Deus, pela qual ele faz sua glória notória entre suas criaturas, é suficientemente clara até onde sua própria luz se manifesta, entretanto, em razão de nossa cegueira, ela se torna inadequada” (João Calvino).
Esses homens ímpios e injustos detêm essa busca por Deus na injustiça que vivem, porque glorificam a Deus segundo seus pensamentos loucos e idólatras minimizando a infinitude do Senhor a imagens de homens ou animais. Sabendo que temos acesso ao Pai por Jesus em um Espírito (Ef 2.18), truncar essa comunicação por qualquer outro caminho seria tão absurdo quando conversar frente a frente com alguém utilizando um aparelho celular.
Essa teologia deturpada leva a uma religião idólatra e, consequentemente, uma moral limitada. Quando alguns grupos evangélicos veem a depravação dos valores acreditam que isso é próprio de nossos dias, mas a estrada da depravação em todas as épocas teve como um grande portão largo em uma visão distorcida sobre Deus. Assim como na visão de Daniel (2.41), o Império Romano é o ferro misturado com o barro da licenciosidade e da baixa moral.
R.C. Sproul defende que “todo cristão é um teólogo. Talvez não um teólogo no sentido técnico e profissional da Palavra, mas um teólogo”. Portanto, a preocupação com a teologia é de vital importância, porque de sua deturpação processam as mazelas da idolatria. Contudo a sã doutrina jamais será palatável a todos, especialmente àqueles que buscam seus próprios mestres (2Tm 4.3) que compactuam com suas idolatria tal como foi o neto de Moisés – Jônatas – para Mica.