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terça-feira, 20 de setembro de 2016

O AMOR DE DEUS


O amor de Deus

O que é o amor? O poeta lusitano Camões (1524) afirma: “amor é fogo que arde sem se ver / é ferida que dói, e não se sente; / é um contentamento descontente, / é dor que desatina sem doer”. O poetinha, Vinícius de Moraes (1913-1980), afirma: “eu possa me dizer do amor (que tive): / que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure” (Soneto da Fidelidade). O grande problema dessas definições é que elas privilegiam a intensidade. Amor verdadeiro é reconhecido pela maneira como ele é vivido.

As pessoas mundanas acreditam que o amor é um pretexto para todos os vícios sejam aceitos e legitimados. O amor, que é validado pelas extravagâncias e excessos, tende a acabar e o que valerá dele é apenas a intensidade de suas exigências. Quantos cônjuges legitimam o adultério nessa visão promíscua de amor? Quantos jovens entregam-se à prostituição e às drogas e a toda sorte de inconveniências em nome de uma felicidade que é recompensa dessa maldita intensidade. Inúmeras pessoas cometam os maiores erros de suas vidas quando acreditam que o melhor da vida é a vida que se leva.

Comumente, o senso-comum, gosta de, aventurando-se na língua grega, distinguir três tipos de amor. No grego antigo, existem três palavras para expressar amor: o amor eros (ἔρως), o amor romântico (esse verbo não é utilizada pelos autores bíblicos), entre os sexos; o amor fileo (φιλέω), amizade e o amor agapao (ἀγαπάω), a fraternidade, distinguindo esse último como mais importante e exclusivo do cristianismo, por isso, o Padre Marcelo Rossi afirma: “ágape é uma palavra de origem grega que significa amor divino, o amor de Deus pelos seus filhos e ainda o amor que as pessoas sentem umas pelas outras inspiradas nesse amor divino”. Contudo o verbo agapao (ἀγαπάω) é utilizado é utilizado para indicar o amor, nada divino, de Amnom por sua irmã Tamar (2Samuel 13.4).

Carson chama esse problema de falácia por causa de problemas envolvendo sinônimos e análise de componentes. Essa falácia se estabelece na “crença injustificada de que ‘sinônimos’ são idênticos de formas mais variadas do que a evidência permite”[1].

Carson dá cinco razões para entendermos a complexidade do amor nas Escrituras[2]:

·         Porque muitas vezes atribui-se a Deus uma amor humano e não aquele que está firmado na Bíblia;

·         Porque as pessoas têm dificuldade em entender um amor que disciplina e age de maneira justa;

·         Porque o amor no ocidente tem se enveredado por caminhos pluralistas, sincréticos e pautados pelo sentimentalismo;

·         Porque Deus não tem sentimentos como nós;

·         Porque o amor que as pessoas acreditam geralmente é aquele que faz “vistas grossas” para as dificuldades alheias.

1. O amor é um ato singular

O amor de Deus não é um sentimento, mas um ato pelo qual não legitima todas as mazelas do seu povo, tampouco para fazer “vistas grossas”, mas o cumprimento da promessa feita e Gênesis 3.15, onde, em resposta ao pecado de nossos primeiros pais, ofereceu a maravilhosa esperança do Redentor – Jesus Cristo.

João mostra que esse amor é singular (οὕτω), porque o Pai deu (ἔδωκεν) seu filho unigênito. Ao enviar seu filho unigênito ao mundo o faz sabendo que no fim haveria de esmaga-lo, fazendo enfermar, oferece-lo como oferta do pecado a fim de que tenhamos a vida eterna (Isaías 53.10). Dar o Unigênito implica esvaziar-se de sua glória, assumir a forma de um servo, humilhar-se tomando a cruz (Filipenses 2.7,8) sendo semelhante ao homem em todas as coisas, exceto no pecado (Hebreus 4.15).

2. O amor é condicionado a crer em Jesus

Esse incrível e imerecido presente não foi dado a todos, porque há um condicionante para esse termo (πᾶς): “aquele que nele crê” (ὁ πιστεύων). Dessa maneira, Jesus não veio para todos sem restrição (como imaginam os universalistas), mas exclusivamente àqueles que creem. Esse grupo específico que a Bíblia chama de eleitos (Efésios 1.4) não são, de maneira alguma melhores que os demais, pois Paulo afirma aos Romanos (5.8): “Deus dá prova do seu amor para conosco, em que, quando éramos ainda pecadores, Cristo morreu por nós”.

Jesus não morreu por justos, mas por injustos, contudo que foram escolhidos, desde antes da fundação do mundo (Efésios 1.4) pela misericórdia divina. Geralmente, algumas pessoas, veem essa maravilhosa graça e começam a apontar essa e aquela pessoa que também deveria ser agraciada com essa bênção eterna, todavia esse pensamento está errado, porque deveríamos nos questionar: “por que eu fui escolhido, apesar de meus muitos pecados?”.

Entretanto a Palavra deixa claro que a fé salvadora não é uma qualidade inata, mas é um dom de Deus (Efésios 2.8), o próprio João afirma que “ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o trouxer (o termo ἑλκύω, usado aqui, transmite a ideia de trazer de arrasto) (João 6.44). Dessa maneira, somente os eleitos crerão e buscarão o Senhor de maneira fiel e o adorarão em “espírito e verdade” (João 4.24).

Dessa maneira João afirma em seu prólogo: o Verbo estava no mundo, o mundo foi feito por intermédio dele, mas o mundo não o conheceu. Veio para o que era seu (o próprio povo judeus conforme Romanos 9.5), e os seus não o receberam. Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu nome; os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus” (João 1.1-13)

3. O amor de Deus nos dá a vida eterna

A grande dádiva advinda desse amor de Deus em Jesus está em primeiro não ser destruído, pois esse é a justa punição daqueles que não crerem em Jesus, porque amou mais a essa vida e as coisas desse mundo do que ao seu Redentor (João 12.25). Todavia, aquele que tem por somenos as coisas mais preciosas desse mundo caído, porque viu o reino de Deus, necessariamente, nasceu de novo, da água e do Espírito (João 3.3,5). Um exemplo esta nos dois ladrões da cruz: ambos estavam diante do mesmo Jesus Cristo, contudo um deles viu mais que um homem crucificado (veja 23.39-43):

·         Entende que é um pecador (arrependimento): “nós, na verdade, com justiça, porque recebemos o castigo que os nossos atos merecem” (Lucas 23.41);

·         Entende que Jesus é justo: “mas este a nenhum mal fez” (Lucas 23.41);

·         Viu mais que um condenado, mas o Rei: “Jesus, Lembra-te de mim quando vieres no teu Reino”. Isso aconteceu, porque recebeu a capacidade de ter certeza das coisas que se esperam e a certeza de fato que não se veem. Isso é a fé salvadora (Hebreus 11.1). Esse homem, diferente de seu colega, nasceu para uma nova vida, assim como angariou o outro benefício de crer em Jesus: receber a vida eterna: “em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso” (Lucas 23.43).

De fato Deus é amor (1João 4.8), contudo esse amor é visto de forma flagrante na cruz do calvário (1João 3.16). Esse amor não é dado de forma irresponsável e sem exigência alguma, mas exige tudo o que somos. Não podemos usufruir desse amor singular de Deus sem rompermos com o mundo e seus falsos atrativos e buscarmos exclusivamente o Senhor e sua glória. Os benefícios em crer em Jesus está em não morrer eternamente (Mateus 10.28) e viver eternamente com Deus.



[1] CARSON, D.A. Os perigos da interpretação bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2001, p. 47.
[2] CARSON, D.A. A Difícil doutrina do Amor de Deus. São Paulo: CPAD, 2012, p. 9-16.

sábado, 17 de setembro de 2016

A FRAGILIDADE DESSA VIDA


A FRAGILIDADE DESSA VIDA



Essa semana nosso pais parou consternado devido à morte trágica do ator Domingos Montagner (1962-2016). Diante dessa triste realidade, longe das Escrituras a única maneira de avaliar a vida é como Shakespeare (1564-1616) “A vida é sombra passageira. Um pobre ator que chega, agita a cena inteira, diz seu papel e sai. E ninguém mais o nota. É um conto narrado por um idiota, Cheio de sons, de fúria e não dizendo nada” (Macbeth, Ato V, cena V).

A consternação das pessoas está em perceber quão frágil é a vida, quão fútil é a maior parte de nossos projetos e incompreensíveis muitos dos eventos que se amontoam freneticamente em nossas histórias. Se olharmos para essa tragédia com olhos mundanos, fatalmente, tomaremos a via do ceticismo. A única maneira de não sermos esse ator irrelevante, dirigido por um idiota é entendermos que o texto de nossa existência foi escrito pelo Criador de tudo e tudo está no controle de sua sábia e imutável vontade.

Calvino afirma: “por mais que ao homem, com sério propósito, convenha volver os olhos a considerar as obras de Deus, uma vez que foi colocado neste esplendíssimo teatro para que fosse seu espectador, todavia, para que fruísse maior proveito, convém-lhe, sobretudo, inclinar os ouvidos à Palavra” (Intitutas, Livro I, Cap. IV, p. 79).

Apenas as poderosas lentes da Palavra podem corrigir nossa míope perspectiva sobre a vida. O homem tem a inclinação de vê-la como maior do que realmente é, assim como, supervaloriza-la. A Bíblia afirma que a vida do homem é como a erva que pela manhã viceja e floresce, mas à tarde é cortada e seca (Salmo 90. 5,6), assim como, o resumo dessa biografia é canseira e enfado (Salmo 90.10). Contudo somos condicionados a acreditar que a vida humana segue um ciclo natural e nada pode impedir isso. Os deístas acreditavam dessa maneira: o Senhor criou leis e nem Ele pode

mudá-las, ou seja, Deus pode existir, mas jamais ser providente. Contudo é certo que dirige, coverne e sustém todoas as coisas desde a menor até a maior (CFW 5,1).

Mas e quando as coisas não saem dessa maneira como imaginávamos? Quando esse ciclo natural de nascer, crescer se reproduzir e morrer é quebrado tragicamente? A consternação é geral e completa. Por exemplo, a mesma teledramarturgia, em que atuava Domingos Montagner (“Velho Chico”), perdeu um ator, Umberto Magnani, aos 75 anos vítima de um acidente vascular encefálico (AVE) que não teve a mesma proporção, tampouco a mesma carga sentimental. Domingos, no imaginário popular, ele é aquele que morreu cedo (54 anos) no campo de batalha, a própria imagem do herói. É perfeitamente compreensível que um idoso morra (mesmo que provoque tristeza), mas um jovem em circunstâncias trágicas é inadmissível. É perfeitamente admissível que nos entristeçamos, mas sempre pelo prisma da esperança que temo em Cristo (1Tessalonicenses 4.13).

Quando olhamos para a realidade da morte pela sabedoria advinda do homem, no máximo iremos, ao niilismo (nada tem valor e, por isso, tudo é permitido). Entretanto, quando lha avaliamos pela Palavra vemo-la como a consequência do pecado (nossos primeiros pais comeram do fruto proibido – Gênesis 2.16,1) e a solução para esse terrível mal é Jesus Cristo (Romanos 5.12). Obviamente, inúmeras vezes, ficamos perplexos e sem todas as respostas que gostaríamos, mas vivemos para glorificarmos a Deus e nos alegramos nEle para sempre e não para entender todas as coisas. Essa nem é o objetivo da Palavra (Veja Deuteronômio 29.29), antes o que o homem deve crer acerta de Deus e o que Ele requer de nós (pergunta 5 do CM)

Dessa maneira, quando Jesus é o bem mais precioso que temos, viver para nós é Cristo e morrer é lucro (Filipenses 1.21) e, por isso, não buscamos tesouros nessa vida, mas na vindoura onde não seremos frustrados pela ação das traças, da ferrugem ou da astúcia de ladrões (Mateus 6.19-21).

Perceba que Domingos, homem forte, professor de educação física, bom nadador, estava tentando percorrer o Rio São Francisco com a atriz Camila Pitanga teria mais condições que ele de lograr êxito. Ambos poderiam morrer, contudo ela sobreviveu e ele não, porque o dia de nossa morte não é uma mera consequência da ação de vírus, parasitas e bactérias ou da ação de adversidades naturais, mas da ação soberana de Deus. O rei Ezequias estava para morrer, mas o Senhor lhe concede mais quinze anos de vida (2Reis 20.6).

Domingos e Camila percorriam o rio estavam cumprindo um trabalho, divertiam-se e tinham planos, mas apenas um deles saiu com vida daquelas águas. Tiveram tempo para pensar em suas vidas? Nenhum deles queria morrer, mas viver e viver. Nunca haverá tempo para pensarmos em nosso Senhor, pois as águas vorazes da vida podem ceifar, segundo a vontade divina, qualquer pessoa a qualquer tempo.


sexta-feira, 2 de setembro de 2016

A terrível insubmissão


A terrível insubmissão



“Ouvi, ó céus, e dá ouvidos, ó terra, porque o SENHOR é quem fala: Criei filhos e os engrandeci, mas eles estão revoltados contra mim” (Isaías 1.2).

O que você acha de pais abandonados por seus filhos? Se existe algo triste são pais que dedicaram toda uma vida na criação de seus filhos e, no momento em que mais precisam, na velhice, veem-se abandonados como trapos velhos sem valor. Não é à toa que honrar pai e mãe seja o primeiro mandamento com promessa: o prolongar dos dias sobre a terra (Efésios 6.2; Deuteronômio 5.16). O pecado do coração humano, cada vez mais, comprova a sabedoria popular de que um pai e uma mãe cuidam de dez filhos, mas esses tais não são capazes de cuidar de um pai ou uma mãe.

Isaías, profeta do século VIII a.C., começou seu ministério no ano da morte do rei Uzias (Isaías 6.1 em 722 a.C. quando tinha 22 anos) e, depois, atuou nos reinados de Jotão, Acaz e Ezequias e foi morto em 690 a.C. durante o reinado de Manassés, de quem, segundo a tradição, foi prisioneiro, sendo serrado no meio de um tronco oco de árvore (o autor de Hebreus faz alusão a esse fato em Hebreus 11.37).

O seu ministério profético foi duro, porque foi enviado pela Trindade da seguinte maneira: vai e dize a este povo: Ouvi, ouvi e não entendais; vede, vede, mas não percebais. Torna insensível o coração deste povo, endurece-lhe os ouvidos e fecha-lhe os olhos, para que não venha ele a ver com os olhos, a ouvir com os ouvidos e a entender com o coração, e se converta, e seja salvo” (Isaías 6.9,10).

Esse povo que não entenderia , tampouco perceberia, mas  seria duro e insensível era muito semelhante aos fariseus dos dias de Jesus, pois, igualmente, praticava uma religiosidade superficial e profundamente legalista, cujo maior objetivo era agradar aos homens e não ao Senhor (João 12.39-43). Esse povo continuava a trazer ofertas, a se reunir nas luas novas, mas eram vãs e abomináveis, porque esses atos de adoração não vinham de um coração fiel (Isaías 1.13) tal como a participação da Ceia do Senhor (1 Coríntios 11.29,30).

A relação desse povo com o Senhor era tão repugnante que o Criador afirma: “Quando estenderdes as vossas mãos, esconderei de vós os meus olhos; e ainda que multipliqueis as vossas orações, não as ouvirei; porque as vossas mãos estão cheias de sangue” (Isaías 1.15). O culto não os transformava, pois eram homicidas (veja Isaías 1.21)

Os primeiros receptores da mensagem de Isaías deveriam entender que a relação que tinham com o Senhor era semelhante a relação de um pai para com um filho. Deveriam entender que a providência divina os tinha criado e lhes engrandecido, por isso, assim como um filho deveriam responder com obediência e gratidão. Deus, definitivamente, não é o pai velhinho abandonado, mas o Deus soberano, que, apesar de seu poder e glória, por amor e misericórdia, relaciona-se com seu povo. Esse dado deveria nos encher de maior temor, porque se, abandonar os pais seria algo errado, abandonar o Senhor (não reconhecendo sua providência) seria um erro maior ainda, porque a lei e os profetas dependem do amor a Deus com todo o coração, toda a alma, todo o entendimento e ao próximo como a ti mesmo (Mateus 22.37-40).
De maneira alguma somos filhos de Deus na mesma maneira que Jesus Cristo, mas, em Jesus, o filho unigénito, eternamente gerado do Pai, somos seus filhos adotivos (Romanos, 8.15; 9.4; Gálatas 4.5; Efésios 1.5). Dessa forma, fazemos parte da família de Deus (Efésios 2.19), sendo herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo (Romanos 8.17). Entretanto, em nada, somos menos susceptíveis a nos revoltar contra o providente Senhor que nos assiste em sua misericórdia, por isso, “aquele que pensa estar em pé, olhe não caia” (1Coríntios 10.12).

Isaías mostra quão estúpida é essa relação superficial com o Senhor, pois compara o povo ao boi e ao jumento, que, apesar de irracionais, conhecem quem os alimenta, porém o povo não reconhecia que tudo o que possuía era proveniente da misericórdia do Senhor. Deus o havia tirado da escravidão egípcia com sinais miraculosos, deu maná e carne no deserto, fez a água jorrar da rocha e expulsou nações mais poderosas para que pudesse habitar na terra que corria leite e mel. Nós, por termos conhecido o cumprimento da promessa de Gênesis 3.15 em Jesus, temos infinitamente mais e, assim, seremos mais cobrados (Lucas 12.48).

Portanto, tomemos cuidado para não desprezarmos a providência de Deus e a íntima e transformadora relação com o Senhor por causa dos prazeres falsos dessa vida. Nossa vida só tem o devido valor quando glorifica o Senhor e se alegra nEle.

Por que a Bíblia nos é imprescindível?


Por que a Bíblia nos é imprescindível?


Na triologia, Piratas do Caribe, vemos que o pirata Jack Sparrow possui uma bússola, mas que, ao invés de apontar para o norte, como as demais, mostra para a direção dos seus desejos. Aquele que se guia pela voz do seu coração admite um instrumento falho e insuficiente para estabelecer o caminho seguro conforme Jeremias 17.9. Contudo, tal indivíduo, será como a perdiz que, na incapacidade de distinguir seus próprios ovos, choca os dos outros pássaros (Jeremias 17.11). Quando orientados pelos nossos desejos, não conseguimos discernir entre o certo e o errado e, sabendo que somos radicalmente depravados, assumiremos, naturalmente, a via que desagrada o Senhor.

Qual deve ser a bússola do cristão para se orientar sobre naquilo que crerá e como conduzirá sua conduta? A Palavra. Muitas pessoas poderão perguntar: quem deu essa autoridade às Escrituras Sagradas? Alguns argumentarão que a igreja, contudo Paulo afirma que ela própria está firmada sobre o fundamento dos Apóstolos e Profetas. Destarte entendemos que a Palavra tem autoridade auferida pelo próprio Deus e, por isso sua autoridade e infalibilidade existe antes da estrutura eclesiástica[1], porque o texto bíblico afirma toda a Escritura é inspirada por Deus”.

Calvino (1509-1564), o reformador de Genebra afirma:

Mui fútil é a ficção de que o poder de julgar a Escritura está na alçada da Igreja, de sorte que se deva entender que do arbítrio desta, a Igreja, depende a certeza daquela, a Escritura. Consequentemente, enquanto a recebe e com sua aprovação a sela, a Igreja não a converte de duvidosa em autêntica, ou de outro modo seria controvertida; ao contrário, visto que a reconhece como sendo a verdade de seu Deus, por injunção da piedade, a venera sem qualquer restrição[2].

Desde antigos tempos, se tinha a dúvida de o quanto da Bíblia deveria ser aceita. Podemos abolir o Antigo Testamento? O herege Marcião de Sinope (85-160), influenciado pelo dualismo gnóstico, “estabeleceu um contraste radical entre o Antigo e o Novo Testamento: o primeiro representa o reino deste mundo e a lei (retribuição); o segundo representa o reino celestial e o evangelho da (graça)”[3], por isso, entendia que “as Escrituras Cristãs deviam incluir somente o evangelho de Lucas e as cartas do Apóstolo Paulo às igrejas, sem as pastorais”. Essa é uma doutrina herética, porque Jesus, ao se encontrar com os discípulos “néscios e tardos de coração” para crerem em tudo o que os profetas disseram (Lucas 24.25), explicou os eventos da morte e ressurreição começando por Moisés e por todos os profetas (Lucas 24.27). Não é à toa que o teólogo Agostinho de Hipona (354-430) afirmava: “o Novo Testamento está escondido no Antigo e o Antigo é revelado no Novo”[4]. Dessa maneira, não temos textos ou partes da Bíblia que merecem aceitação, porque é toda, sem excessão, é inspirada por Deus.

Por “inspiração” (θεόπνευστος), transmite a ideia de expirar, soprar para fora, com esse termo “Paulo quer dizer que toda a Escritura é exalada de Deus”[5]. A inspiração é orgânica/dinâmica “o termo orgânico serve para acentuar o fato de que Deus não empregou os escritores mecanicamente, mas atuou neles de maneira orgânica, em harmonia com as leis de seu próprio íntimo”[6], ou seja, quando Pedro afirma que jamais a profecia teve origem na vontade humana, mas homens santos falaram da parte de Deus, orientados pelo Espírito Santo” (2Pedro 1.21) não está dizendo que as Escrituras Sagradas foram inspiradas de forma mecânica (como um psicografia espírita), mas de tal maneira que o Senhor usou o caráter, o temperamento, os dons, os talentos, instrução, cultura, dicção e estilo[7] dos Escritores bíblicos, entretanto “incitou-os a escrever; reprimiu a influência do pecado sobre sua atividade literária, e guiou-os na escolha de suas palavras e nas expressões de seus pensamentos”[8] (Lucas 1.1-4; 2 Pedro 3.16) Dessa maneira, a Bíblia não contém a Palavra de Deus (porque foi parcialmente inspirada ou seus autores humanos tiveram suas mentes inspiradas, mas não suas palavras), mas é a Palavra de Deus.

Dessa maneira, a Bíblia é, como Cristo, humana e divina, ou seja, é humana, porque foi escrita por homens e, por isso, foi escrita em um tempo, contexto, cultura, língua diferente da nossa. Diminuiremos essas distâncias com o estudo da Palavra recorrendo a comentários, dicionários e a professores. Contudo ela é divina, assim, é necessário a luz do Espírito Santo para crer na sua verdade. O teólogo Reverendo Augustos Nicodemus defende: “como Palavra de Deus, a Bíblia deve ser lida como nenhum outro livro, mas, tendo sido escrita por homens, deve ser interpretada como qualquer outro livro”. Apesar da complexidade de algumas páginas das Escrituras, é imprescindível que entendamos que aquilo que é suficiente para a nossa salvação é de fácil compreensão (veja Atos 4.13), o que a fé Reformada chama de doutrina da perspicuidade.

Hoje, não existe mais inspiração, pois a Palavra está completa e não de pode ir além daquilo que ela fala, tampouco acrescentar-lhe mais informação alguma (Gálatas 1.8,9; Apocalípse 22.18,19), mas a iluminação do Espírito Santo como Calvino, o Reformador de Genebra, afirma: é necessário que o mesmo Espírito que falou pela boca dos profetas penetre em nosso coração, para que nos persuada de que eles proclamaram fielmente o que lhes fora divinamente ordenado[9].

Aqueles que não creem na inspiração da Palavra a têm como mera abstração, uma produção literária que não tem valor para regrar nossas vidas. Quantas vezes você ouviu pessoas dizendo que a Bíblia precisa ser revista e se adequar a nossa cultura? Jesus diz que a sua Palavra jamais passará (Mateus 24.35), assim como todas as culturas terão acesso a sua doutrina, pois Jesus manda seus discípulos fazer discípulos em todas as nações. Não é a Bíblia que deve se adaptar a nós, assim como não é Deus que deve servir aos nossos intentos, mas, radicalmente, o contrário. É possível que não entendamos plenamente alguns textos das Escrituras, mas o problema não está nela, mas em nós e nas nossas limitações intelectuais.

Aqueles que creem na inspiração da Bíblia precisam tê-la como única regra de fé e moral, dessa maneira, nossas dúvidas em quem devemos crer, como cultuar a Deus ou como devemos proceder devem ser respondidas pela sabedoria divina da Palavra. Dessa forma, aquele que deposita na Bíblia possui um ganho, uma vantagem (ὠφέλιμος) diante daqueles que não creem, pois tem um instrumento seguro de ensino, repreensão, correção e instrução na justiça.

O ímpio perde em relação ao cristão, porque, confiando em seu coração, utiliza um instrumento falível e pouco confiável (Jeremias 17.9) ou a interpretação da vida que outros ímpios têm. Devido a graça comum às vezes conseguem resvalar na verdade, mas nunca se aprofundam nela com propriedade, porque toda verdade vem de Deus.

R.C. Sproul afirma:

Como criaturas caídas nós pecamos, erramos e estamos inerentemente deformados no que diz respeito à retidão. Quando pecamos precisamos ser repreendidos. Quando erramos, necessitamos de correção. Quando nos achamos deformados, devemos ser educados. As Escrituras funcionam como nosso principal repreensor, nosso principal corretor e educador[10].

Aquele que crê na inspiração das Escrituras e é submisso a sua pedagogia nela proposta, ou seja, passa pelo seu ensino, repressão, correção e educação na justiça tem mudanças na sua personalidade, porque o objetivo (ἵνα) da Palavra é a adaptação do homem de Deus aos padrões da Palavra que glorificam ao Senhor. Paulo mostra a Timóteo que o Cristão possui um antes e um depois em relação à Bíblia, pois antes de nossa conversão estávamos em total desacordo com a vontade divina, porque, como o Apóstolo dos Gentios afirma aos Efésios: “todos nós também caminhávamos entre eles, buscando satisfazer as vontades da carne, seguindo os seus desejos e pensamentos; e éramos por natureza destinados à ira” (Efésios 2.3). Perceba que o próprio Paulo se inclui nesse nefasto caminho mesmo imerso na extrema e radical do farisaísmo, mostrando que a mera religiosidade superficial não é capaz de agradar o Senhor.

O ímpio, destituído da Palavra iluminada pelo Espírito Santo, jamais observará as orientações da Revelação Específica a fim de se adequar à vontade daquele que o chamou da morte para a vida, por isso, apenas o homem de Deus (o convertido, o eleito) observará a santa doutrina e a servirá não com o intuito de ganhar nada, porque já foi agraciado com a salvação eterne com bênção sem medida advindas das mãos providentes do Criador, mas por gratidão por tudo o que recebeu e tem recebido.

Essa adaptação/habilitação (a ideia de perfeição nesse texto exposta no termo ártiosἄρτιος) do Cristão para com a Palavra deve ser percebida de forma prática, por isso, Paulo defende que, apesar de não sermos salvos pelas obras para não nos gloriamos diante de Deus (Efésios 2.9), somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas (Efésios 2.10). Tiago é mais enfático ao entender que a fé só pode ser vista e acompanhada pelas obras (Tiago 2.18) a ponto de afirmar: “a fé, se não tiver obras, por si só está morta” (Tiago 2.17). Portanto, vemos a adaptação do homem a vontade de Deus pelas boas obras que o homem só pode produzir adequadamente em consonância com os pressupostos bíblicos. João Batista adverte que existe um machado posto a raiz para cortar aqueles que não produzem frutos de arrependimento (Mateus 3.10).

A grande armadilha das obras está em querer angariar bens além morte (como pensam os espíritas que transformam a caridade em moeda de troca para bens futuros), contudo ninguém será mais salvo ou menos salvo pelas obras que praticou, porque esse não é o objetivo das obras. Outros querem, por meio delas, angariar bens temporais e o prestígio dos homens, contudo a Bíblia afirma que a mão esquerda não pode saber o que faz a direita, quando essa dá esmola (Mateus 6.2-4).

Portanto, quando alguém lhe perguntar qual a verdadeira bússola que é capaz de orientar a vida do homem. Saiba a Palavra é imprescindível, porque ela é exalada de Deus, oferece uma pedagogia infalível e é capaz de mudar nossa conduta.



[1] CALVINO. J. Institutas da Religião Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p.82 (L 1, Cap. 7)
[2] Ibidem, p.82.
[3] MATOS, A.S. Fundamentos da Teologia Histórica. São Paulo: Mundo Cristão, 2008, p. 39,40.
[4] Quaestiones in Heptateucum, 2,73.
[5] MAIA, H.M.P. A Inspiração e Inerrância das Escrituras: uma perspectiva Reformada. São Paulo: Cultura Cristã, 1998, p.96,97.
[6] BERKHOF, L. Manual de Doutrina Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, p.37.
[7] Ibidem, 37.
[8] Ibidem, p.37.
[9] CALVINO. J. Institutas da Religião Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p.85 (L 1, Cap. 7)
[10] SPROUL, R.C. O Conhecimento das Escrituras. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p.24.