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sábado, 27 de dezembro de 2014

O Poslúdio de Natal


O Poslúdio de Natal
Tirando aqueles que partilham da fé romana que começaram o natal na vigília do dia 24 e vão concluir as celebrações desse tempo litúrgico apenas no dia 11 de janeiro (festa do batismo do Senhor). Sem contar que a igreja romana celebra o natal do dia 25 ao dia 1º de janeiro (as oitavas do natal). Contudo, nós que não partilhamos da mesma visão litúrgica e teológica, já começamos a encaixotar árvores artificiais, penduricalhos e as luzes, que nos serviram de ternos enfeites, porque conhecemos Jesus, todavia àqueles, cuja finalidade dessa data é comer e beber, só serviram de decoração para uma festa que passa no tempo do efeito dos remédios para o fígado e má digestão.
Muitos cristãos têm investido tempo em um combate inútil a essa comemoração apontando suas origens pagãs, porém não percebem como o cristianismo tem se corrompido em estruturas distantes do verdadeiro evangelho. Resgatar a mensagem do natal implica em uma busca pertinente para preservar a genuína mensagem cristã.
Estamos acostumados a ouvir sermões que condenam o Papai Noel, todavia ele é a fábula que constantes gerações optaram ouvir que dar atenção à verdade (2Tm 4.3,4). A popularidade do “bom” velhinho está atrelada a omissão da igreja em oferecer o devido testemunho, pois nossas congregações podem se enveredar pelas mazelas do partidarismo, da vanglória ou do egoísmo (veja Fl 2.3,4).
Calvino defende que partidarismo (eritheía – ἐριθεία) é quando “cada um se dispõe a manter com persistência sua opinião pessoal”[1]. Esse problema era visível na igreja de Corinto (1Cor 1.11-13), pois homens como Pedro, Apolo e Paulo estavam sendo honrados de tal maneira que prejudicavam a honra de Cristo, que “só reina em nosso meio quando ele constitui os elos que nos ligam a ele numa unidade sacra e inviolável”[2].
Algumas igrejas buscam a mesma glória vã/vazia (kenodoxia – κενοδοξία), que “assanha a mente dos homens, de modo que cada um se deleita com suas invenções pessoais”[3]. Ananias e Safira queriam a glória vazia de serem vistos pela igreja como doadores que sacrificaram tudo, mas, secretamente, reservarem parte do dinheiro[4] isso é visto como uma ação perniciosa de satanás (At 5.3,4).
Para esses dias que pessoas buscam as igrejas para ficarem ricas ou a procura de sentimentos paliativos, John Bunyan afirma que “o homem que assume uma religião por motivos mundanos, também a abandonará pelos mesmos motivos”[5].
O egoísmo de atentar-se para as posses e títulos é outro câncer da igreja fiel. Segundo Boor, a igreja não necessita de pessoas que negligencie suas obrigações, pois isso traria encargos que a comunidade da fé não poderia suprir, mas lembrar-se do próximo de tal forma que ninguém fique desassistido ou sobrecarregado[6] deve ser uma característica da família da fé. Só podemos pensar nos outros sem sermos meramente altruístas ou paternalistas imitando a disposição de Jesus de assumir nossa humanidade para nos salvar.
As estruturas corrompidas, no conselho de Paulo, devem encontrar remédio na humildade de Jesus na manjedoura de Belém. A igreja é convidada a imitar a humildade de Jesus no natal não se apegando, se esvaziando e se humilhando.
Paulo, inspirado pelo Espírito Santo, ordena a comunidade da fé a imitar a mesma estrutura mental de Cristo (froneístho – φρονείσθω), porque tanto nossas atitudes boas como as ruins começam em nosso coração, ou seja, na nossa disposição de enxergar a vida. Não é à toa que Salomão disse: “sobre tudo o que deve guardar, guarda o coração, porque dele procedem as fontes da vida” (Pv 4.23). Paul David Tripp afirma: “o coração é o você ‘verdadeiro’. É a essência de quem você é. Apesar de colocarmos muita ênfase na pessoa exterior, todos nós reconhecemos que a pessoa verdadeira é a de dentro”[7].
Segundo Tripp[8], os incentivos ou a pressão externa podem mudar temporariamente o comportamento e as circunstâncias, mas se a mudança não for radical e acontecer no coração, pela graça de Jesus, não se perpetuarão. Se do íntimo do homem procedem “os maus desígnios, a prostituição, os furtos, os homicídios, os adultérios, a avareza, as malícias, o dolo, a lascívia, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura” (Mc 7.21,22), urge buscarmos aquele que muda o coração de pedra em coração de carne.
A primeira lição que Jesus nos dá no natal e, que tem o poder que reformar nossa visão do mundo ao nosso redor, é o desapego. Conta-se que um dia Sócrates, certo dia, diante de uma tenda do mercado, disse: “Vede quantas coisas os atenienses precisam para viver”[9]. Quantas coisas foram inventadas para nos escravizar. Daqui a pouco tempo uma criança imaginará como nossa geração viveu sem celular, tal como pensamos como nossos ancestrais viveram sem geladeira. Os confortos são bons e necessários, mas eles não podem nos engessar em um comodismo vicioso.
Nossa sociedade consumista nos impregnou de uma concepção absurda que mede quem somos por aquilo que temos. Dessa maneira, não conseguimos negar a nós mesmos para tomar a cruz que é imposta àqueles que desejam seguir o Salvador (Mc 8.34), tampouco somos capazes de dar a outra face, ou nossa capa ou andar a segunda milha (Mt 5.39-41). Encastelamo-nos em um feudo de prazeres e vaidades que nos dão um conforto fugaz e, também, nos mata pouco a pouco.
Calvino traduz Filipenses 2.6 da seguinte maneira: subsistindo na forma de Deus, não considerou 0 ser igual a Deus coisa a que se devia apegar[10], pois o termo ἁρπαγμός, que na Almeida Revista e Atualizada está traduzido como “usurpou”, significa, segundo o Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, para a maioria dos exegetas, “coisa agarrada como desposo”[11]. Barclay[12] entende duas possibilidades de tradução: 1.) Jesus não precisa se desfazer da igualdade com Deus, porque esse é seu direito e ninguém pode tirar essa realidade dele, 2.) Jesus não reteve sua igualdade se recusando a entregá-la.
Entendemos que Jesus não reteve sua majestade, glória e autoridade orgulhosamente se negando ao plano redentor estabelecido antes da fundação do mundo, tampouco sua encarnação não foi capaz de fazê-lo menos Deus do que foi desde a origem, porque o autor de Hebreus diz que Jesus é “o resplendor da glória e a expressão exata do seu Ser” (Hb 1.3)[13].
Jesus não reteve sua igualdade com Deus para estabelecer um padrão de conduta, pois nos ensina que podemos. Calvino, da mesma maneira, afirma: A humildade de Cristo consistiu em ele descer, do pináculo mais elevado de glória à ignomínia mais baixa; nossa humildade consiste em refrear-nos de uma exaltação egoísta por uma falsa estima. Ele renunciou ao seu direito; tudo o que se requer de nós é que não assumamos para nós mesmos mais do que devemos[14]. Nosso orgulho e o desejo de nos apegarmos a coisas efêmeras nos levam para longe do verdadeiro sentido do natal.
A segunda lição que recebemos de Jesus, que nos faz engajar em uma vida comprometida com o evangelho fiel, é o seu esvaziamento (kenoo – κενόω). Jesus, diferente do que alguns liberais afirmam como Barclay, Jesus não deixou sua divindade. Berkhof defende que esse esvaziamento implica “renunciar Ele a Sua majestade do supremo Governador do universo, e assumir a natureza humana de um servo”[15]. Calvino entende que nesse período de humilhação, que vai da manjedoura à descida ao hades, Jesus não perdeu, nem diminuiu sua divindade, mas apenas o ocultou na carne[16].
No ventre de Maria Jesus recebe a humanidade e, por ser gerado do Espírito (Lc 1.35), “as duas naturezas inteiras, perfeitas e distintas – a divindade e a humanidade – foram inseparavelmente unidas em uma só pessoa, sem CONVERSÃO, COMPOSIÇÃO ou CONFUSÃO”[17] (Cl 2.9; Rm 9.5).
O esvaziamento implicou Jesus assumir a forma de um servo, o que se torna inegavelmente evidente quando lava os pés dos seus discípulos (Jo 13.14,15) assumindo a tarefa de um escravo, tornando-se um padrão de conduta para todos os seus discípulos. Talvez um dos grandes entraves do “cristianismo” de nossos dias esteja no fato de que algumas pessoas não estão dispostas a servir, mas serem servidas. Carson afirma: “o zelo cristão divorciado da humildade transparente soa como vazio e até mesmo patético”[18]. Servir não pode ser um simples rito, um ideal ou uma expressão lingüística, mas uma prática. O termo grego δοῦλος (doulos) significa escravo.
Jesus assumiu nossa humanidade em todos os aspectos exceto o pecado, mostrando-nos que nossas atitudes pecaminosas não fazem parte de nossa natureza, mas da atitude idolátrica de colocar um ídolo no lugar de Deus[19]. Dessa maneira, Jesus amou o Jovem Rico (Mc 10.21), se compadeceu da viúva de Naim (Lc 7.13), chorou diante do túmulo de Lázaro (Jo 11.15) e se irritou com os vendilhões do templo (Jo 2.15), mas sem nenhum pecado. Dessa forma, não podemos culpar nossa natureza para as nossas mazelas, mas mortificar-nos aos pés da cruz.
Existem duas formas de desapego: material e emocional. Tenho duas filhas. Quase sempre uma quer o brinquedo da outra e é comum uma dar de livre e espontânea vontade, mas, ao sentir falta do que perdeu, começar a chorar. Isso mostra que uma ou outra está disposta a se desfazer fisicamente do brinquedo, mas não emocionalmente. Jesus se esvaziou de sua relação favorável com a lei, se fazeno pecado em nosso lugar (2Cor 5.21); suas riquezas (2Cor 8.7); sua glória celestial e o livre exercício de sua autoridade[20]. Da mesma maneira, não ficou se lamentando o que se desapegou quando passou fome no deserto (Mt 4.2) ou sedo no poço de Jacó (Jo 4.7) e no alto da cruz (Jo 19.28). O Senhor nos ensinou a nos desapegarmos física e emocionalmente das coisas desse mundo.
A terceira lição que reformadora de nossa vida cristã é a humilhação. O esvaziamento do Senhor é visto em sua humilhação (tapeinóo – ταπεινόω), cuja essência “está no fato de que o supremo legislador se coloca sob a lei” (Gl 4.4). O orgulho não edifica ninguém, porque Jesus nos mostra, em parábola, que um publicano e um fariseu subiram ao templo. Este orava de maneira orgulhosa, enquanto aquele se reconhecia como indigno. O publicano foi justificado e o fariseu não, porque todo o que se exalta será humilhado; mas o que se humilha será exaltado (Lc 18.14).
A humilhação de Jesus se dá no fato de obedecer até a cruz. Igualmente, vencemos o orgulho quando somos capazes de obedecer até a morte (Ap 2.10). Jesus não recebe galardão algum em obedecer, porque ele é o galardoador, tampouco tem posição, mais elevada, pois é Deus com o Pai e o Espírito Santo, mas obedece como novo Adão (1Cor 15.45) para nos ensinar o valor da obediência.
Se soubermos nos desapegar, esvaziar e humilhar conseguiremos fazer uma reforma profunda em nossas vidas alicerçando-a à Palavra, assim como dando o real sentido para o Natal que vai muito além de decorações e comilanças, mas de imitarmos Jesus na sua humildade. Esse artigo deseja ser um poslúdio que encerra as celebrações que executamos em nossas igrejas, mas um prelúdio de uma nossa concepção de ser cristão.



[1] CALVINO, João. Filipenses. São José dos Campos-SP: Fiel, 2010, p. 40.
[2] CALVINO, João. 1Coríntios. São José dos Campos-SP: Fiel, 2003, p. 46.
[3] CALVINO, João. Filipenses. São José dos Campos-SP: Fiel, 2010, p. 41.
[4] BOOR, Werner. Comentário Esperança: Atos. Curitiba-PR: Esperança, 2002, p.52.
[5] BUNYAN, John. O Peregrino. Boituva-SP: Publicadora Menonita, 2009, p. 121,122.
[6] BOOR, Werner. Comentário Esperança: Filipenses. Curutiba-PR: Esperança, 2006, p. 33.
[7] TRIPP, Paul David. Instrumentos nas Mãos do Redentor. São Paulo: NUTRA, 2009, p. 92.
[8] Ibidem, p.96.
[9] https://sites.google.com/site/filosofiapopular/filosofia/filosofia-classica. Acessado no dia 27 de dezembro de 2014 às 03h26.
[10] CALVINO, João. Filipenses. São José dos Campos-SP: Fiel, 2010, p. 42.
[11] COENEN, Lothar; BROWN, Colin. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2000, verbetes 159, 162.
[12] BARCLAY, William.Comentário do Novo Testamento. Disponível em http://pt.slideshare.net/OBREIRO/barclay-13316771
[13] Segundo Calvino, “embora não seja o propósito do Apóstolo, aqui, discutir a natureza de Cristo propriamente dita, mas sua natureza como nos é revelada, não obstante ele refuta suficientemente os arianos [Jesus é inferior ao Pai] e os sebelianos [Jesus e Deus são aspectos ou modos do agir de Deus], atribuindo a Cristo o que pertence exclusivamente a Deus e distinguido, ao mesmo tempo, as duas pessoas separadamente – o Pai e Filho. Consequentemente, inferimos que o Filho é um só Deus com o Pai, ainda que seja, não obstante, apropriadamente de tal maneira distinto, que cada um mantém sua própria substância” (CALVINO, João. Hebreus. São José dos Campos-SP: Fiel, 2012, p.34.
[14] CALVINO, João. Filipenses. São José dos Campos-SP: Fiel, 2010, p.43.
[15] BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 306.
[16] CALVINO, João. Filipenses. São José dos Campos-SP: Fiel, 2010, p.45.
[17] Confissão de Fé de Westminster, VIII, 2.
[18] CARSON, D.A. Comentário de João. São Paulo: Shedd, 2007, p.468.
[19] TRIPP, Paul David. Instrumentos nas Mãos do Redentor. São Paulo: NUTRA, 2009, p. 100.
[20] HENDRIKSEN, W. Filipenses. São Paulo: Cultura Cristã, 2005, p. 477, 478.

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