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sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Há um Deus vulnerável na manjedoura?


Há um Deus vulnerável na manjedoura?
Existem três comemorações que os cristãos de diferentes denominações costumam celebrar: o nascimento de Jesus, a sexta-feira da paixão e a páscoa (a ressurreição). Nessas duas primeiras festividades há uma comoção geral entre as pessoas. Quem nunca ouviu falar do espírito do Natal? Nesses três momentos, tem-se o interesse de assimilar a vida e a história de Jesus do seu nascimento até a sua ressurreição na vida litúrgica da igreja. Quando essas celebrações são feitas de acordo com a Palavra e não pelas invenções humanas ou sugestões de satanás, edificam aqueles de delas usufruem.
O natal e a sexta-feira da paixão podem produzir um sentimentalismo vão que ora usurpa de Jesus o seu verdadeiro lugar (lega seu devido espaço ao Papai Noel ou a um Cristo eternamente crucificado), ora subtrai-lhe a importância. Muitos sentem um prazer mórbido e pecaminoso ao verem o menino Jesus da manjedoura ou o chagado homem de dores, porque acreditam que como menino ou agonizante torna-se um Deus frágil, que não exige mudança, tampouco tem poder para julgar.
Essa é a visão de Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa) quando, no poema O Guardador de Rebanhos, afirma: “Vi Jesus Cristo descer à terra./ Veio pela encosta de um monte/ Tornado outra vez menino,/ A correr e a rolar-se pela erva/ E a arrancar flores para as deitar fora/ E a rir de modo a ouvir-se de longe”[1]. Pessoa, por meio de Caeiro, retrata um Jesus que foge da mentira do céu, onde interpretava um papel divino e no qual lhe foi negado ter um pai e uma mãe.
Tal como os Fariseus de outrora que buscavam enquadrar Jesus em um currículo de Messias que era incompatível ao indouto filho do carpinteiro (Mt 13.53-58; Lc 4.16-30; Jo 6.42). Segundo João, os judeus nutriam alguns preconceitos extrabíblicos que utilizavam como critérios para aguardar a vinda do Messias: ele não teria sua procedência conhecida (Jo 7.27); seria um operador de grandes sinais (Jo 7.31) e que não viria da Galileia (Jo 7.42). Carson[2], comentando João 1.46, afirma que o fato de Jesus ter sido criado em Nazaré (Mt 2.23) obscurecia seu nascimento em Belém e, assim, sua descendência do rei Davi.
A ânsia de ver Jesus como uma simples personagem histórica é latente, nos dias dos fariseus apóstatas ou em nossos dias em que Bultmann, teólogo alemão que nutria o desejo impossível (pela falta de fontes) de encontrar na bíblia uma imagem de Jesus sem sinais miraculosos (que via como mitos), mas pautado pelos fatos, assim como o escritor português José Saramago, na obra O Evangelho Segundo Jesus Cristo, na qual defende que Jesus é fruto da relação sexual de José e Maria[3].
Contudo, quando Mateus descreve a genealogia de Jesus, com o intuito de mostrar que ele de fato era da descendência de Davi, mostra de Mateus 1.1-16a a ênfase de homens gerando filhos, todavia, em Mateus 1.16b, a ênfase está em Maria: José, marido de Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama o Cristo” (Mateus 1.16b). Segundo Hendriksen[4], Jesus não é fruto da relação íntima de um casal, pois não a conheceu, enquanto[5] ela não deu à luz um filho, a quem pôs o nome de Jesus” (Mateus 1.25). Dessa maneira, José é pai legal de Jesus o que lhe dá direito ao trono de Davi e cumpre a profecia de que um descendente de Davi sempre ocuparia o trono (2Samuel 7.12,13), por isso, o anjo apresenta Jesus a Maria: Este será grande e será chamado Filho do Altíssimo; Deus, o Senhor, lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele reinará para sempre sobre a casa de Jacó, e o seu reinado não terá fim” (Lc 1.32,33).
Berkhof[6] defende que “se Jesus fosse gerado por um homem, seria uma pessoa humana, incluída na aliança das obras, e, como tal, partilharia da culpa comum da humanidade. Dessa maneira, temos certeza que Jesus não tem contaminação alguma pelo pecado.
Segundo Costa[7], era necessário que o Redentor tivesse duas naturezas: humana e divina, porque aquela lhe dá a capacidade de dar perfeito exemplo a seus discípulos; cumpre o propósito de dominar a criação; representar seu povo como novo Adão; cumprir a lei; para que pudesse sentir os efeitos do pecado (sem se contaminar com ele); ser tentado e oferecer o devido padrão. A natureza divina permitiu a Jesus cumprir perfeitamente a lei; fosse capaz de salvar; derrotar definitivamente a satanás; suportasse a culpa de seu povo e a ira de Deus; oferecer mediação ao seu povo e apresentar-se como sacrifício perfeito.
O verdadeiro foco para contemplarmos o Senhor está em reconhecermos que ele foi semelhante a nós em todas as coisas, exceto no pecado (Hb 4.15). Jesus amou o Jovem rico (Mc 10.21), chorou no tumulo de Lázaro (Jo 11.35), compadeceu-se da viúva de Naim (Lc 7.11), agiu com firmeza contra os vendedores do templo (Jo 2.15), angústia e tristeza no Getsêmani (Mt 26.37), todavia, como afirma Calvino, “em Cristo, em quem habitou a plenitude da justiça e absoluta pureza, essas emoções estavam isentas de todo pecado”[8]. Enquanto nossas emoções atingem níveis incontroláveis capazes de controlar nossa razão e determinar ou modificar nossos princípios, as de Jesus “sempre foram reguladas por um estrito princípio de justiça”.
Fernando Pessoa exclama diante do seu Jesus fictício: “e a criança tão humana que é divina”[9], porém não existem duas formas de Jesus (homem e Deus), mas “as duas naturezas, inteiras, perfeitas e distintas – a divindade e a humanidade – foram inseparavelmente unidas em uma só pessoa, sem conversão, composição ou confusão; essa pessoa é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, porém, um só Cristo, o único Mediador entre Deus e o homem” (CFW VIII, 2).
Portanto, da manjedora a ressurreição Jesus é o mesmo homem e Deus e o único que pode nos dar uma vida plena e que caminha para a eternidade. Tanto o Jesus adorado pelas mais diferentes classes sociais (pastores e magos), aquele que é pregado do madeiro e aquele que ressuscitou afirma que, para segui-lo, é necessário negar a si mesmo e tomar a sua cruz (Mc 8.34). Não há vulnerabilidade na manjedoura, mas aquele que nos ensinou a mais intensa humildade.





[1] PESSOA, Fernando. Poemas Completos de Alberto Caeiro. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 43.
[2] CARSON, D.A. Comentário de João. São Paulo: Shedd, 2007, p.160.
[3] SARAMAGO, José. O Evangelho Segundo Jesus Cristo. São Paulo, Companhia das Letras: 2005, p.19.
[4] HENDRIKSEN, Willian, Comentário do Novo Testamento: Mateus. Vol 1. São Paulo: Cultura Cristã, 2001.
[5] Apesar de Mateus 1.25 não estar nos melhores manuscritos, consideramos que a conjunção ἕως é pertinente e mostra que após o período de gestação do Messias José e Maria tiveram relação sexual.
[6] BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. São Paulo, Cultura Cristã: 2001, p.308,309
[7] COSTA, Hermisten Maia Pereira. Eu creio no Pai, no Filho e no Espírito Santo. São Paulo, Parakletos: 2002, p.223-225.
[8] CALVINO, João. Hebreus. São José dos Campos-SP: Fiel, 2012, p.115.
[9] PESSOA, Fernando. Poemas Completos de Alberto Caeiro. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 45.

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