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sexta-feira, 24 de novembro de 2017

A sinistra liberdade da gaiola


A Sinistra liberdade da gaiola

“[...] o que foi semeado em terra boa, este é o que ouve a Palavra, e a entende e dá fruto [...]” (Mateus 13.23).



Arvoredo é uma cidade típica de interior onde as pessoas ainda se sentam a porta para jogar conversa fora. Todos se conhecem e o homem mais sábio da cidade era o seu Antônio, o farmacêutico, que entre unguentos e injeções tinha uma outra paixão: os pássaros tinha viveiros e viveiros repletos, mas tinha predileção por quatro canários que ficavam na parede do alpendre. Diferente dos outros esses tinham apelidos que se sobrepunham às oficiais nomenclaturas científicas e cantos pitorescos. Antônio os chamava de Caifás, Demas, Um talento e Paulo. Esses canários, por serem preferidos aos demais, eram tratados não por empregados, às vezes relapsos, mas pelo próprio Antônio, que, se deleitavam o cântico matinal, que, como sublime quarteto, deixavam seu café da manhã mais saboroso. Às vezes deliciava-se tanto com aquele canto natural que se atrasava em chegar no seu estabelecimento.

Existem muitos pássaros vagabundos que vivem da tentativa de roubas a água cristalina e o alpiste dourado daquele Versaille de arame prateado e a abundância só fazia aquelas aves nobres mais altivos e orgulhosos, mas havia um pássaro maltrapilho que se diferenciava dos outros. Não roubava, muito menos insultava aqueles lordes emplumados, mas falava a todos de um mundo muito mais rico e verdadeiro. Era chamado de Evangelista e dizia que eles estavam presos em suas gaiolas e que aquela vida era uma mentira. Acusava-os de idolatria, porque no lugar de adorarem o Criador adoravam a criatura. Alguns pássaros começaram a ouvi-lo, outros o tinham por um tagarela. Entre os que gostavam dele estavam três dos canários prediletos. Caifás, cheio de sua natural empáfia, chamava-o de louco e herege. Como renegariam o Antônio que com tanto amor cuidava deles para seguirem devaneios infundados.

Não demorou muito tempo até Demas e Um Talento fugirem de suas gaiolas. Aproveitaram um descuido e voaram com toda as forças. Antônio ficou desolado, não queria se alimentar e mesmo que Caifás fizesse estripulias musicas nada o fazia feliz. Os dois fugitivos, como nasceram em cativeiro, não conheciam as adversidades da vida. Decidiram seguir caminhos diferentes, mas um talento logo percebeu que em todo canto haviam inúmeros predadores prontos para devorá-lo. Com muito medo, sentiu saudade da proteção que a gaiola oferecia. Não demorou muitos dias a aparecer na janela do farmacêutico ansioso a ser reintegrado naquele mundo de constância e proteção.

Demas resistiu mais, contudo percebeu que a comida precisava ser encontrada e, como era preguiçoso, depois de uma curta estadia na liberdade logo retornou a mesma gaiola onde tinham a sinistra liberdade de saber em qual puleiro veriam aquela vida de escravidão e conforto.

Caifás os recriminava vociferando que deveriam cantar com mais gosto pela grande misericórdia que receberam. Dizia que outro dono teria fechado a porta ou cortado as asas deles. Paulo ouvia as histórias deles e se tornara um dos poucos a procurar as palavras de Evangelista. Era estranho, porque mesmo tomando conhecimento das dores além da gaiola e da escassez que poderia enfrentar seu mundo era maior do que a extensão daqueles arames e há muito tempo não entoava seu canto ao dono que os alimentava, mas ao soberano Criador que lhe dera a vida e proveria suas necessidades.

Depois da fuga dos pássaros, Antônio se tornara muito mais cuidadoso no trato e não oferecia brechas. Naquele palácio que virara Alcatraz, Paulo pedia uma oportunidade. Houve um dia especialmente quente, Caifás nem conseguiu chegar as oitavas que estava acostumado. Entre uma partitura e outra bebericava a sua água, sem em temperatura ambiente, mas aquela noite foi memorável. Uma ventania se armou antes da chuva que fez com que a gaiola de Paulo caísse e a porta se abrisse. O porvir se mostrava terrível, mas incrivelmente nada mais lhe importava. Não ouviu as súplicas de Caifás, não percebeu as lágrimas de Um talento, tampouco o deboche de Demas. Mergulhou na amplidão em um voa que não teve mais fim.

No outro dia, pela manhã, na hora do trato, Antônio viu a gaiola amassada e o deu como morto e de fato estava, pois já não era ele Paulo que vivia, mas Cristo é que viveria nele agora.

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