Igreja, tribunal ou hospital
Certa vez vi um cartaz com a seguinte informação: “a igreja deveria ser
mais hospital que tribunal”. Em um primeiro momento, essa sentença me pareceu
interessante, mas, depois de alguma reflexão, pude constatar os erros sombrios
e perniciosos que ela esconde, pois induz à negligência da disciplina
eclesiástica o que incentiva o indivíduo a buscar uma igreja infiel e que está
sujeita a uma prática apenas externa e descompromissada com Bíblia.
Segundo a Constituição da Igreja Presbiteriana do Brasil (CI/IPB) no seu
artigo 2 afirma: “A Igreja Presbiteriana do Brasil tem por fim prestar culto a
Deus, em espírito e verdade, pregar o Evangelho, batizar os conversos, seus
filhos e menores sob sua guarda e ‘ensinar os fiéis a guardar a doutrina e
prática das Escrituras do Antigo e Novo Testamentos, na sua pureza e
integridade, bem como promover a aplicação dos princípios de fraternidade
cristã e o crescimento de seus membros na graça e no conhecimento de Nosso
Senhor Jesus Cristo’”.
Dessa maneira, a razão pela qual nos reunimos como igreja é atendermos a
orientação de nosso Senhor para que adoremos em espírito e em verdade (Jo
4.23), ou seja, que não tenhamos como centro um lugar físico, o templo (veja Jo
4.20), tampouco se utilizemos de ritos externos tais como os que funcionaram no
Antigo Testamento como “figura e sombra das coisas celestes” (Hb 8.5).
Jesus afirma que esse adorador é verdadeiro utilizando a termo grego
alethinoi (ἀληθινοὶ) do verbo alethinós (ἀληθινός)
que significa “algo que é real por ser a plena revelação de Deus”
(George Ladd). Dessa maneira, o Bom Mestre não está dizendo que os adoradores
que vieram antes de sua encarnação foram mentirosos, mas que “em todas as
épocas sucessivas desde o princípio do mundo, [a eficácia e os benefícios da
redenção] foram comunicados aos eleitos por meio de promessas, tipos e
sacrifícios, pelos quais, ele [Jesus] foi revelado” (Confissão de Fé de
Westminster - CFW, VIII, 6), porque “sob a lei, foi administrado por meio de
promessas, profecias e sacrifícios da circuncisão, do cordeiro pascal e de
outros tipos de ordenanças dados ao povo judeu, tudo prefigurando o Cristo que
advinha de vir” (CFW, VII, 5).
Portanto, o verdadeiro adorador não necessita de um rito com excessivas
pompas e glória externa, mas apenas da fiel administração da Palavra e dos
sacramentos (veja CFW, VII, 6).
A igreja, cumprindo a ordem de Mateus 28.19,20, visa fazer discípulos
pelo processo do batismo e do ensino da Palavra. O centro da vida eclesiástica
está no estudo e na prática das Sagradas Escrituras, que nos servem como “única
regra de fé e prática” (CI/IPB art.1). Contudo a comunidade cristã não funciona
como um clube em que os membros se reúnem esporadicamente para o seu lazer ou
serviço e no qual as regras têm cunho apenas administrativo. O poder da igreja
é, também, espiritual, porque pode ser visível na disciplina, pois a
“Disciplina eclesiástica é o exercício da jurisdição espiritual da Igreja sobre
seus membros, aplicada de acordo com a Palavra de Deus” (Código de
Disciplina-CD, 2).
Portanto, não há disciplina sem Palavra, pois a falta que leva o
indivíduo ou o concílio a ser disciplinado deve ser uma atitude que “não esteja
de conformidade com os ensinos da Sagrada Escritura, ou transgrida e prejudique
a paz, a unidade, a pureza, a ordem e a boa administração da comunidade
cristã.” (CD, art.4). Da mesma maneira, não pode haver pregação fiel sem a
disciplina, porque são incompatíveis (1Jo 3.6).
A igreja, representada pelo seu Conselho, não pode vigiar o coração de
seus fiéis (foro íntimo), pois só Deus (e jamais o diabo) pode sondar mente e
coração (Pv 21.2; Rm 8.27; Ap 2.17), todavia a vida pública do crente (foro
externo) está sujeita à vigilância e observação da igreja (CD, art.1). A
disciplina tem como objetivos (CD, art.2 parágrafo único):
1. edificar o povo de Deus;
2. corrigir escândalos, erros ou faltas;
3. promover:
a.) a honra de Deus;
b.) a glória de Nosso Senhor Jesus Cristo;
c.) o próprio bem dos culpados.
Calvino, que foi um ávido praticante da disciplina na igreja de Genebra,
disse, em carta, para Henrique Bullinger: “não teremos uma igreja duradoura a
menos se restaure completamente a antiga disciplina apostólica, negligenciada
em nós por muitos aspectos”. Com certeza, a disciplina, uma das marcas de uma
igreja fiel, não é aplicada em nossos dias pelos mesmos motivos que levaram a
igreja de Corinto a negligenciá-la ao jovem que se deitava com a própria
madrasta (1Cor 5.1). Em primeira instância, ela parece trabalhosa, cansativa e
corruptora da paz, todavia, se olharmos com mais atenção, perceberemos que tal
desatino permite que cresça, nas arestas da igreja, a erva daninha da
imoralidade e da perversão, que, aos poucos, tiram o foco da comunidade para as
coisas celestiais e o fixa em realidades passageiras e efêmeras.
Quantas vezes, cabe-nos o corar de vergonha pelo fato do nome de Deus
ser blasfemado entre os gentios por nossa causa (Ez 16.27; Rm 2.24), porque se
abandonou o primeiro amor (Ap 2.4), ou seja, muitos “cristãos” envolveram-se em
uma prática viciosa de ritos externos, mas dissociadas do coração. Muitas
igrejas possuem, tal como a comunidade de Éfeso, um trabalho perseverante no
ensino (ortodoxia) e na aplicação (ortopraxia) da Bíblia, mas fazem isso por
meio de uma tradição estéril que pouco ou nenhum benefício traz a não ser a
disciplina do Senhor (Ap 2.5).
Precisamos compreender que se a igreja não aplicar a disciplina por medo
de parecer um tribunal que vive acusando. O dono da igreja – JESUS CRISTO – irá
disciplinar esse indivíduo e onde congrega. Quando olhamos a carta à igreja de
Tiatira (Ap 2.18-29), vemos essa realidade, porque lá vivia uma mulher, que o
senhor chama de Jezabel, a qual se declarava profetiza, e cujo ensino
incentivava os crentes à prostituição e era tolerada pela igreja (Ap 2.20). Ela
e seus seguidores estavam sendo disciplinados (Ap 2.21-23). A igreja de Pérgamo
sofreria se não se desvinculasse da doutrina de Balaão seguida por seus
membros. Dessa forma, a disciplina é processo pelo qual alguém tem a
oportunidade e rever sua vida e voltar à prática fiel das Escrituras, assim
como da igreja testemunhas sua luz ao mundo que vive em trevas.
Muitos podem afirmar: pelo fato da igreja ser formada por pecadores
redimidos (que estão sob influência e não sobre domínio do pecado), ela não
poderia julgar um irmão, pois o próprio Jesus jamais julgou. Essa afirmação
esconde dois erros:
a.) Jesus julgou sim: emitiu um juízo de valor sobre cada uma das sete
igrejas de Apocalipse, o qual serve como parâmetro para as igrejas em geral,
assim como na ocasião em que lhe trouxeram a mulher surpreendida em adultério
(Jo 8.1-11) disse a ela: “vai e não peques mais” (Jo 8.11b). O Senhor mostra
que a atitude pela qual ela foi acusada era pecado e que ela devia mudar de
vida;
b.) Em Mateus 18.18, a igreja recebe aquilo que chamamos de poder das
chaves, ou seja, os oficiais da igreja têm poder de “reter ou cancelar pecados;
de fechar esse reino a pecadores impenitentes, tanto pela palavra quanto pelas
censuras (disciplina); de abri-lo aos pecadores penitentes, pelo ministério do
Evangelho e pela absolvição das censuras, quando as circunstâncias o exigirem”
(CFW, XXX, 2).
Há quem, por impiedade, afirme que a igreja é o único exército que deixa
os seus feridos para traz, pois o disciplinado perde o direito de exercer
cargos na congregação, assim como, de participar da Santa Ceia do Senhor. É
importante afastar o disciplinado dos seus devidos ministérios e do sacramento
da Ceia para que não continue em uma prática apenas superficial da fé que não o
abençoa, tampouco glorifica o Senhor, pois ver para esse sacramento carregando
uma vida de pecado contumaz implica em censuras terríveis infligias pelo
próprio Deus (Veja (1Cor 11.23-32).
Entendo que a disciplina deve estar intimamente acompanhada de um
discipulado e que o disciplinado precisaria de um irmão mais experiente para
orientá-lo e instruí-lo, pois a pessoa não se encontra nessa situação por um
processo arbitrário, mas porque a igreja desenvolveu com ela os passos de
Mateus 18.15-17. O que acontece, geralmente, não é que a igreja abandonou seus
feridos, mas os enfermos, por orgulho, desonestidade ou indolência, rejeitam a
disciplina como indevida e optam por mudar de igreja ou seguir pelo mundo,
quase sempre em murmuração.
Concluímos que a disciplina é um método terapêutico da igreja, pois visa
sanar aquilo que dificulta o indivíduo a ter uma relação mais íntima com o
Senhor. A igreja é hospital e tribunal, pois o próprio hospital é um lugar de
juízo. O médico arbitra sobre o tratamento do seu paciente tendo, inúmeras
vezes, que lançar mão de métodos dolorosos para que haja vida e não morte.
Ninguém gosta de cirurgias e remédios amargos, porém alguns enfermos precisam
deles para se restabelecer.
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