A
Bíblia e o homem
A proposta
desse trabalho é fazer uma abordagem do homem antes da queda, depois da queda e
em sua restauração (levando em consideração o “já” e o “ainda não”) em sete
aspectos: biológico, psicológico, moral, espiritual, social, cultural e
teológico. Dessa maneira, poderemos traçar um perfil geral do ser humano e
entendermos suas angústias e visualizarmos a solução para seu mal.
Cremos que
Deus fez todas as coisas para a sua glória. Dessa maneira, o Senhor fez do nada
uma estrutura, como afirma Wolters (2006, p.69), “refere-se à ordem da criação,
à constituição criacional constante de qualquer coisa, o que faz com que o
objeto ou entidade seja o que é”. Essa estrutura estava direcionada para a sua
grandeza.
A estrutura
biológica do homem (sua estrutura física) era marca por uma profunda harmonia
com o ecossistema em que habitava. A alimentação humana era baseada em vegetais
(Gn 1.29), o que até hoje tem boa receptividade ao nosso organismo, todavia não
endossamos nenhuma dieta vegetariana como um intuito de crescimento espiritual,
pois tomamos como base de Romanos 14.6. Antes da queda homem foi abençoado com
fecundidade (Gn 1.28a). A vida do homem não estava sujeita ao ataque de vírus e
bactérias, tampouco a doenças mortais, porque a vida do homem estava sujeita a
sua obediência a ordenança de Gênesis 2.17.
Entendemos
por estrutura psicológica a relação do homem consigo mesmo, com os outros e com
o mundo ao seu redor (abstraímos a relação com Deus na estrutura espiritual e
teológica). Dessa maneira, o homem não possuía grandes fontes de stress, pois não havia problemas
familiares, nem mesmo com as questões estéticas de um com o outro (Gn 2.25),
pois “uma vez que a aparência deles era
perfeita, não tinham o menor temor de que um cônjuge desaprovasse o outro”
(PIPER, 2011, p.30), tampouco a terra dava cardos e abrolhos, mas arvores boas
à vista e agradável ao consumo (Gn 2.9). O homem vivia em um estado de
inocência, porém “tinha a liberdade e o poder de querer e fazer
aquilo que é bom e agradável a Deus, mas mudavelmente, de sorte que pudesse
decair dessa liberdade e poder” (Confissão de Fé de Westminster
[CFW] IX, 2).
Apesar de ética e moral serem sinônimos perfeitos, optamos por entender
como Vasquez (1984) que a ética cuida de princípios filosóficos, enquanto a
moral trata de normas de conduta e juízos de valor. A grande norma de conduta
do Éden era: “da árvore do
conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres,
certamente morrerás” (Gn 2.17).
Sobre a estrutura espiritual entendemos o relacionamento do homem com
Deus, o qual era extremamente intenso e prático, pois foi criado à imagem e
semelhança de Deus que caminhava com ele no paraíso pela viração do dia (Gn
3.8). A própria criação era uma mensagem viva e eficaz para nossos mais antigos
antepassados.
Entendemos que a estrutura social do homem deve se confundir com o
próprio mandato social (assim como a estrutura cultural deve se confundir com o
mandato cultural). O mandato social se dá na ordem do Senhor para que o homem
se multiplicasse e enchesse toda a terra (Gn 1.28a). O homem, antes da queda,
vivia em harmonia com sua esposa, pois não temos relatos bíblicos que desabonem
essa informação, pode-se dizer que apenas Adão e Eva nesse estado de inocência
poderiam dizer: tenho o melhor cônjuge do mundo.
A base do mandato cultura está nos imperativos de Gênesis 1.28b e o
homem, até a queda, desenvolveu-a consonante a vontade do Criador e, por isso,
exercia excelente mordomia. Essa interação com o mundo ao seu redor é
basicamente para o seu sustento e para a glória de Deus.
Consideramos a estrutura teológica dentro da realidade cúltica. No
Éden, não havia espaço para a heresia até a tentação. Não temos uma estrutura
formal de culto, pois ela acontecia na vida prática do homem com Deus. Nossos
pais viam claramente a verdade do Criador em tudo ao seu redor.
Após a queda,
quando nossos primeiros pais foram seduzidos por satanás (Ap 20.2. Veja CFW,
VI,1), toda a estrutura humana é pervertida e a inclinação mais efetiva do
homem é para o pecado e a rebelião contra o Senhor. Todavia apesar de nossas
misérias Deus levanta homens para pregar a esse povo apresentando-lhes a leis
para servir de aio até a consumação da promessa feita em Gênesis 3.15, o
proto-evangelho.
O homem, em
sua estrutura biológica do homem passa por uma terrível mudança, pois enquanto
lhe estava vedada a morte física (separação entre corpo e alma até a
ressurreição) ela começa a acontecer no momento do pecado e se concretizou
quando completou cento e trinta anos (Gn 5.3) e esse traço de morte é
transmitido a todos os seus descendentes (Rm 5.12), de tal maneira que os dias
dos homens são encurtados a cento e vinte anos por serem carnais (Gn 6.3).
A alimentação
do ser humano é afetada, pois, segundo Campos (2012, p.237), o fato do homem
comer a erva do campo (Gn 3.18) o iguala às bestas feras e após o dilúvio há a
permissão de se alimentar de tudo o que se move e vive (Gn 9.3). Contudo Campos
(2012, p.239) defende que essa permissão poderia apenas validar uma prática que
já existia, pois a queda afetou nosso paladar e, assim, nossas opções
gastronômicas. A fecundidade, também, é afetada aparecendo a esterilidade (Gn
11.30; 25.21; 29.31).
O homem em
pecado não consegue lidar com seus pecados. Vemos Adão culpar sua esposa do
pecado e ela, por sua vez, culpa a serpente, ao invés de cada um admitir seus
próprios erros e pedirem perdão. Kidner (1979, p.65), comentando Gênesis
3.11,12, afirma: “A segunda resposta
admite a verdade, mas a envolve contra a mulher e, em última instância, contra
Deus”. O homem busca subterfúgios verbais para esconder ou amenizar seu
mal, mas, conforme Kidner apresenta, em seu comentário, esse é apenas mais um
obstáculo à misericórdia.
Quanto aos
valores morais, a queda implica na quebra de Gênesis 2.17 o que distorce
completamente os juízos de valor do ser humano, pois o que antes era bom passa
a ser mau. A nudez, outrora boa, passa a ser um problema tal que Adão e Eva
tecem cintas (Gn 3.7) para solucioná-lo, porém Deus age estabelecendo um padrão
indumentário que vai do pescoço aos pés (POLLARD, 2006, p.25). O homem opta por
assassinar (o caso de Caim e Abel, Gn 4.8), por adquirir um relacionamento
poligâmico (Lameque em Gn 4.19), relações incestuosas (Gn 19.31-37).
A estrutura
espiritual do homem caído é marcada por uma grande ruptura com o Senhor, pois
quando nossos primeiros pais ouviram a voz do Senhor esconderam-se dele, pois
reconheciam, sem arrependimento, o pecado que tinham ometido. Nessa situação, toda
a humanidade morre espiritualmente (Rm 5.12) e a natureza oferece uma mensagem
que é capaz de deixá-lo indesculpável (Rm 1.20), mas não de convertê-lo (CFW
I,1).
Na estrutura
social, a relação do homem com sua família se torna profundamente complicada,
porque logo após a queda, como vimos, temos uma total falta de consenso dos
primeiros cônjuges e um fraticídio entre seus filhos e se agrava em uma
banalização da vida: Lameque mata duas pessoas por motivos fúteis (Gn 4.23).
Dessa forma, o homem caído tem grande problema consigo, com o próximo e mesmo
com o mundo ao seu redor. As paixões doentias e egoísticas passam a ser a
palavra de ordem e para satisfazê-las as filhas de Ló comentem incesto, os
habitantes de Sodoma queriam se deitar com os anjos (Gn 19.5) e a mulher do
Levita foi brutalmente estuprada e morta (Jz 19.25,26).
A linhagem de
Caim tem um desenvolvimento cultural invejável (Gn 4.16-26). O leitor ímpio ou
descuidado poderá concluir que foi uma bênção para Caim se afastar de Deus. Se
a prosperidade fosse sinal da aceitação do Senhor Caim e sua linhagem seriam os
mais aprovados, ledo engano. Segundo Kidner (1979, p. 73), “a família de Caim é um microcosmo: seu padrão de proezas técnicas e de
fracasso moral é o da humanidade”. Desenvolvimento tecnológico sem rígidos
princípios éticos e sem respeito à Palavra só pode levar ao orgulho e maior
depravação, veja-se a inútil briga pelo desenvolvimento das pesquisas com
células-tronco embrionárias. Por causa dos efeitos da queda, o homem não
consegue sujeitar e dominar a natureza para a glória de Deus e, assim, promove
um grande desequilíbrio ecológico.
Na perspectiva teológica, o homem caído pode se voltar ao
sincretismo religioso (como o bezerro de ouro de Êx 32.4,5) ou na mais densa
idolatria. Calvino (2001, p.64,65), comentando o primeiro capítulo de Romanos,
entende que o ser humano é afetado por uma terrível cegueira, mas que não lhe
consegue eximi-lo da ignorância, ou seja, o ser humano está impedido de ver a
glória do Senhor na criação, mas isso não faz dele menos pernicioso. Hendriksen
(2006, p.52), entende que essa idolatria é própria de corações que
vivem apenas no plano horizontal o que consequentemente os direciona para
torpeza mental, a desesperança emocional e a depravação espiritual.
Segundo Wolters (2006, p.79) a
redenção implica em promover a restauração (volta ao estado original) não
apenas uma área limitada do homem, ele por inteiro. Portanto. o ser humano, em
sua estrutura biológica, deve retornar ao seu estado original, alimentando-se
no “já” de forma adequada evitando a glutonaria (Gl 5.21; Pv 23.2).
Calvino (1998, p.169) entende que o
termo κῶμος por “uma vida dissoluta e todo gênero de
intemperança de apetite”,
buscando uma alimentação saudável. Pohl (1997, p.127), considera que Paulo
entende a glutonaria como um pecado que gera um mal interpessoal com o rico
fazia a Lázaro (Lc 16.21). Contudo acreditamos que as “leis da saúde” interpretadas
pelos adventistas, apesar de bons efeitos práticos, baseiam-se na salvação
pelas obras e em uma má interpretação da Palavra.
Cristo adverte Marta: “Eu
sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá” (Jo 11.25). Nossa fome e sede serão
direcionadas a Jesus e saciadas por ele (Jo 6.35), de tal maneira que Piper
(2006, p.23) entende que a comida e a fome foram criadas para que tivéssemos
ideias do que Cristo quis dizer quando disse: “eu sou o pão da vida” (Jo 6.35), assim, “quando nós comemos, experimentamos a caracterização de nosso alimento
celeste – o Pão da vida e quando jejuamos, dizemos: ‘eu amo a Realidade acima
da caracterização’” (PIPER, 2006, p.24).
Na estrutura
psicológica regenerada, a carne milita contra o espírito (Gl 5.17) e, assim, o
homem continua passível de não admitir seus erros, inclinado a gostar daquilo
que desagrada o Senhor, por isso, Paulo constata que não fazia o que preferia,
mas o que detestava (Rm 7.15). Sproul (2009, p.41), citando Edwards, afirma: “a vontade sempre escolhe de acordo com
sua mais forte
inclinação do momento”,
por isso, Calvino afirma que “o coração
pio não faz o bem que tanto deseja, visto não ser acompanhado do devido
empenho” (2001, p.255). Na realidade escatológica do “ainda não”, “a vontade do homem se torna perfeita e
imutavelmente livre para o bem só” (CFW, IX, 5).
O homem regenerado vive o mesmo
problema de Isaías, termos lábios impuros e habitamos no meio de pessoas de
impuros lábios (Is 6.5). Mediante essa realidade, o Mestre pede ao Pai para que
sejamos santificados na verdade da Palavra, porque estamos no mundo, mas não
pertencemos a ele. Costa (2012, p.130), comentando Jo 17.15,16, afirma: “antes o pecado comandava nosso pensar e
agir; agora, ele ainda nos influencia; todavia não mais reina”, por isso, o
crente deve se deter à Palavra e a oração (meios de preservação, CFW XVII,3).
Spener (1985, p. 77) afirma sabiamente que “o
Espírito fala ao nosso coração na medida em que nele faz morada”, todavia
na eternidade teremos plena comunhão com o Senhor e seremos incapazes de pecar.
Quando
regenerados, somos vivificados de nossos delitos e pecados (Ef 2.5) e, em Jesus
Cristo, temos paz com Deus (Rm 5.1). Segundo Calvino (2001, p.180), a conclusão
de Paulo “as almas desditosas estarão
sempre desassossegadas, a menos que repousem na graça de Cristo”. Dessa
maneira, a confissão de Agostinho de Hipona é a de todo crente: “[...] nos criastes para Vós [Deus] e o nosso coração
vive inquieto, enquanto não repousar em Vós [Deus]”. Essa é a base
da espiritualidade do homem regenerado.
Horton (2006),
seguindo a classificação da cultura de Helmut Richard Neibhur, defende que
Cristo não pode ser contra ou a favor da cultura, tampouco sobre ou em paradoxo
a ela, mas ser o seu transformador. O evangelho de ser apresentado ao mundo
apontando o pecado de nossos dias e oferecer um caminho melhor. Dessa maneira,
a nossa transformação radial pelo arrependimento nos leva a não entrar nos
esquemas humanos (Rm 12.2), o que faz de nós influenciadores.
A teologia do
homem regenerado, busca uma aproximação sempre maior e mais íntima com a
Palavra revelada (Revelação específica) (Is 55.6), buscando interpretá-la de
tal maneira que seja sempre profundamente clara e capaz de nos oferecer a plena
certeza sobre as verdades em que fomos instruídos (Lc 1.4). Essa clareza
teológica deve nos conduzir a uma maior compreensão de nossa miséria e da
grandeza de Deus. Geralmente, uma teologia coerente gera crentes submissos a
Palavra e obedientes, não há piedade alguma na rebeldia.
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