O
Poslúdio de Natal
Tirando aqueles que partilham da fé romana que
começaram o natal na vigília do dia 24 e vão concluir as celebrações desse
tempo litúrgico apenas no dia 11 de janeiro (festa do batismo do Senhor). Sem
contar que a igreja romana celebra o natal do dia 25 ao dia 1º de janeiro (as
oitavas do natal). Contudo, nós que não partilhamos da mesma visão litúrgica e teológica,
já começamos a encaixotar árvores artificiais, penduricalhos e as luzes, que
nos serviram de ternos enfeites, porque conhecemos Jesus, todavia àqueles, cuja
finalidade dessa data é comer e beber, só serviram de decoração para uma festa
que passa no tempo do efeito dos remédios para o fígado e má digestão.
Muitos cristãos têm investido tempo em um combate
inútil a essa comemoração apontando suas origens pagãs, porém não percebem como
o cristianismo tem se corrompido em estruturas distantes do verdadeiro
evangelho. Resgatar a mensagem do natal implica em uma busca pertinente para
preservar a genuína mensagem cristã.
Estamos acostumados a ouvir sermões que condenam o
Papai Noel, todavia ele é a fábula que constantes gerações optaram ouvir que
dar atenção à verdade (2Tm 4.3,4). A popularidade do “bom” velhinho está
atrelada a omissão da igreja em oferecer o devido testemunho, pois nossas
congregações podem se enveredar pelas mazelas do partidarismo, da vanglória ou
do egoísmo (veja Fl 2.3,4).
Calvino defende que
partidarismo (eritheía – ἐριθεία)
é quando “cada um se dispõe a manter com
persistência sua opinião pessoal”[1].
Esse problema era visível na igreja de Corinto (1Cor 1.11-13), pois homens como
Pedro, Apolo e Paulo estavam sendo honrados de tal maneira que prejudicavam a
honra de Cristo, que “só reina em nosso
meio quando ele constitui os elos que nos ligam a ele numa unidade sacra e
inviolável”[2].
Algumas igrejas buscam
a mesma glória vã/vazia (kenodoxia – κενοδοξία), que “assanha
a mente dos homens, de modo que cada um se deleita com suas invenções pessoais”[3].
Ananias e Safira queriam a glória vazia de serem vistos pela igreja como
doadores que sacrificaram tudo, mas, secretamente, reservarem parte do dinheiro[4]
isso é visto como uma ação perniciosa de satanás (At 5.3,4).
Para esses dias que
pessoas buscam as igrejas para ficarem ricas ou a procura de sentimentos
paliativos, John Bunyan afirma que “o
homem que assume uma religião por motivos mundanos, também a abandonará pelos
mesmos motivos”[5].
O
egoísmo de atentar-se para as posses e títulos é outro câncer da igreja fiel.
Segundo Boor, a igreja não necessita de pessoas que negligencie suas
obrigações, pois isso traria encargos que a comunidade da fé não poderia
suprir, mas lembrar-se do próximo de tal forma que ninguém fique desassistido
ou sobrecarregado[6]
deve ser uma característica da família da fé. Só podemos pensar nos outros sem
sermos meramente altruístas ou paternalistas imitando a disposição de Jesus de assumir
nossa humanidade para nos salvar.
As
estruturas corrompidas, no conselho de Paulo, devem encontrar remédio na
humildade de Jesus na manjedoura de Belém. A igreja é convidada a imitar a
humildade de Jesus no natal não se apegando, se esvaziando e se humilhando.
Paulo,
inspirado pelo Espírito Santo, ordena a comunidade da fé a imitar a mesma
estrutura mental de Cristo (froneístho – φρονείσθω), porque tanto nossas atitudes
boas como as ruins começam em nosso coração, ou seja, na nossa disposição de
enxergar a vida. Não é à toa que Salomão disse: “sobre tudo o que deve guardar, guarda o coração, porque dele procedem
as fontes da vida” (Pv 4.23). Paul David Tripp afirma: “o coração é o você ‘verdadeiro’. É a essência de quem você é. Apesar
de colocarmos muita ênfase na pessoa exterior, todos nós reconhecemos que a
pessoa verdadeira é a de dentro”[7].
Segundo
Tripp[8], os
incentivos ou a pressão externa podem mudar temporariamente o comportamento e as
circunstâncias, mas se a mudança não for radical e acontecer no coração, pela
graça de Jesus, não se perpetuarão. Se do íntimo do homem procedem “os maus desígnios, a prostituição, os
furtos, os homicídios, os adultérios, a avareza, as malícias, o dolo, a
lascívia, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura” (Mc 7.21,22), urge
buscarmos aquele que muda o coração de pedra em coração de carne.
A
primeira lição que Jesus nos dá no natal e, que tem o poder que reformar nossa
visão do mundo ao nosso redor, é o desapego. Conta-se que um dia Sócrates,
certo dia, diante de uma tenda do mercado, disse: “Vede quantas coisas os atenienses precisam para viver”[9].
Quantas coisas foram inventadas para nos escravizar. Daqui a pouco tempo uma
criança imaginará como nossa geração viveu sem celular, tal como pensamos como
nossos ancestrais viveram sem geladeira. Os confortos são bons e necessários,
mas eles não podem nos engessar em um comodismo vicioso.
Nossa
sociedade consumista nos impregnou de uma concepção absurda que mede quem somos
por aquilo que temos. Dessa maneira, não conseguimos negar a nós mesmos para
tomar a cruz que é imposta àqueles que desejam seguir o Salvador (Mc 8.34),
tampouco somos capazes de dar a outra face, ou nossa capa ou andar a segunda
milha (Mt 5.39-41). Encastelamo-nos em um feudo de prazeres e vaidades que nos
dão um conforto fugaz e, também, nos mata pouco a pouco.
Calvino
traduz Filipenses 2.6 da seguinte maneira: “subsistindo na forma de Deus, não considerou 0
ser igual a Deus coisa a que se devia
apegar”[10], pois o termo ἁρπαγμός, que na Almeida Revista e
Atualizada está traduzido como “usurpou”,
significa, segundo o Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,
para a maioria dos exegetas, “coisa
agarrada como desposo”[11].
Barclay[12]
entende duas possibilidades de tradução: 1.) Jesus não precisa se desfazer da
igualdade com Deus, porque esse é seu direito e ninguém pode tirar essa
realidade dele, 2.) Jesus não reteve sua igualdade se recusando a entregá-la.
Entendemos
que Jesus não reteve sua majestade, glória e autoridade orgulhosamente se
negando ao plano redentor estabelecido antes da fundação do mundo, tampouco sua
encarnação não foi capaz de fazê-lo menos Deus do que foi desde a origem,
porque o autor de Hebreus diz que Jesus é “o resplendor da glória e a expressão
exata do seu Ser” (Hb 1.3)[13].
Jesus
não reteve sua igualdade com Deus para estabelecer um padrão de conduta, pois
nos ensina que podemos. Calvino, da mesma maneira, afirma: “A
humildade de Cristo
consistiu em ele descer, do
pináculo mais elevado de glória à ignomínia mais baixa; nossa humildade consiste em refrear-nos de uma exaltação
egoísta por uma falsa estima. Ele renunciou ao seu direito; tudo o que se requer de nós
é que não assumamos para nós
mesmos mais do que devemos”[14]. Nosso orgulho e o desejo de nos apegarmos a coisas
efêmeras nos levam para longe do verdadeiro sentido do natal.
A
segunda lição que recebemos de Jesus, que nos faz engajar em uma vida
comprometida com o evangelho fiel, é o seu esvaziamento (kenoo – κενόω). Jesus, diferente do que alguns liberais afirmam como Barclay, Jesus não
deixou sua divindade. Berkhof defende que esse esvaziamento implica “renunciar Ele a Sua majestade do supremo
Governador do universo, e assumir a natureza humana de um servo”[15].
Calvino entende que nesse período de humilhação, que vai da manjedoura à
descida ao hades, Jesus não perdeu, nem diminuiu sua divindade, mas apenas o
ocultou na carne[16].
No
ventre de Maria Jesus recebe a humanidade e, por ser gerado do Espírito (Lc
1.35), “as duas naturezas inteiras,
perfeitas e distintas – a divindade e a humanidade – foram inseparavelmente
unidas em uma só pessoa, sem CONVERSÃO, COMPOSIÇÃO ou CONFUSÃO”[17]
(Cl 2.9; Rm 9.5).
O
esvaziamento implicou Jesus assumir a forma de um servo, o que se torna
inegavelmente evidente quando lava os pés dos seus discípulos (Jo 13.14,15)
assumindo a tarefa de um escravo, tornando-se um padrão de conduta para todos
os seus discípulos. Talvez um dos grandes entraves do “cristianismo” de nossos
dias esteja no fato de que algumas pessoas não estão dispostas a servir, mas
serem servidas. Carson afirma: “o zelo
cristão divorciado da humildade transparente soa como vazio e até mesmo
patético”[18].
Servir não pode ser um simples rito, um ideal ou uma expressão lingüística, mas
uma prática. O termo grego δοῦλος (doulos) significa escravo.
Jesus
assumiu nossa humanidade em todos os aspectos exceto o pecado, mostrando-nos
que nossas atitudes pecaminosas não fazem parte de nossa natureza, mas da
atitude idolátrica de colocar um ídolo no lugar de Deus[19].
Dessa maneira, Jesus amou o Jovem Rico (Mc 10.21), se compadeceu da viúva de
Naim (Lc 7.13), chorou diante do túmulo de Lázaro (Jo 11.15) e se irritou com
os vendilhões do templo (Jo 2.15), mas sem nenhum pecado. Dessa forma, não
podemos culpar nossa natureza para as nossas mazelas, mas mortificar-nos aos
pés da cruz.
Existem
duas formas de desapego: material e emocional. Tenho duas filhas. Quase sempre
uma quer o brinquedo da outra e é comum uma dar de livre e espontânea vontade,
mas, ao sentir falta do que perdeu, começar a chorar. Isso mostra que uma ou
outra está disposta a se desfazer fisicamente do brinquedo, mas não
emocionalmente. Jesus se esvaziou de sua relação favorável com a lei, se fazeno
pecado em nosso lugar (2Cor 5.21); suas riquezas (2Cor 8.7); sua glória
celestial e o livre exercício de sua autoridade[20]. Da
mesma maneira, não ficou se lamentando o que se desapegou quando passou fome no
deserto (Mt 4.2) ou sedo no poço de Jacó (Jo 4.7) e no alto da cruz (Jo 19.28).
O Senhor nos ensinou a nos desapegarmos física e emocionalmente das coisas
desse mundo.
A
terceira lição que reformadora de nossa vida cristã é a humilhação. O
esvaziamento do Senhor é visto em sua humilhação (tapeinóo – ταπεινόω), cuja essência “está
no fato de que o supremo legislador se coloca sob a lei” (Gl 4.4). O
orgulho não edifica ninguém, porque Jesus nos mostra, em parábola, que um
publicano e um fariseu subiram ao templo. Este orava de maneira orgulhosa,
enquanto aquele se reconhecia como indigno. O publicano foi justificado e o
fariseu não, porque “todo o que se
exalta será humilhado; mas o que se humilha será exaltado” (Lc 18.14).
A
humilhação de Jesus se dá no fato de obedecer até a cruz. Igualmente, vencemos
o orgulho quando somos capazes de obedecer até a morte (Ap 2.10). Jesus não
recebe galardão algum em obedecer, porque ele é o galardoador, tampouco tem
posição, mais elevada, pois é Deus com o Pai e o Espírito Santo, mas obedece
como novo Adão (1Cor 15.45) para nos ensinar o valor da obediência.
Se
soubermos nos desapegar, esvaziar e humilhar conseguiremos fazer uma reforma
profunda em nossas vidas alicerçando-a à Palavra, assim como dando o real
sentido para o Natal que vai muito além de decorações e comilanças, mas de
imitarmos Jesus na sua humildade. Esse artigo deseja ser um poslúdio que
encerra as celebrações que executamos em nossas igrejas, mas um prelúdio de uma
nossa concepção de ser cristão.
[1]
CALVINO, João. Filipenses. São José
dos Campos-SP: Fiel, 2010, p. 40.
[2]
CALVINO, João. 1Coríntios. São José dos Campos-SP: Fiel, 2003, p. 46.
[3]
CALVINO, João. Filipenses. São José
dos Campos-SP: Fiel, 2010, p. 41.
[4]
BOOR, Werner. Comentário Esperança: Atos.
Curitiba-PR: Esperança, 2002, p.52.
[5]
BUNYAN, John. O Peregrino.
Boituva-SP: Publicadora Menonita, 2009, p. 121,122.
[6]
BOOR, Werner. Comentário Esperança:
Filipenses. Curutiba-PR: Esperança, 2006, p. 33.
[7]
TRIPP, Paul David. Instrumentos nas Mãos
do Redentor. São Paulo: NUTRA, 2009, p. 92.
[8]
Ibidem, p.96.
[9]
https://sites.google.com/site/filosofiapopular/filosofia/filosofia-classica.
Acessado no dia 27 de dezembro de 2014 às 03h26.
[10]
CALVINO, João. Filipenses. São José
dos Campos-SP: Fiel, 2010, p. 42.
[11] COENEN,
Lothar; BROWN, Colin. Dicionário Internacional de Teologia do Novo
Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2000, verbetes 159, 162.
[12]
BARCLAY, William.Comentário do Novo Testamento. Disponível em
http://pt.slideshare.net/OBREIRO/barclay-13316771
[13]
Segundo Calvino, “embora não seja o
propósito do Apóstolo, aqui, discutir a natureza de Cristo propriamente dita,
mas sua natureza como nos é revelada, não obstante ele refuta suficientemente
os arianos [Jesus é inferior ao Pai] e os sebelianos [Jesus e Deus são aspectos
ou modos do agir de Deus], atribuindo a Cristo o que pertence exclusivamente a
Deus e distinguido, ao mesmo tempo, as duas pessoas separadamente – o Pai e
Filho. Consequentemente, inferimos que o Filho é um só Deus com o Pai, ainda
que seja, não obstante, apropriadamente de tal maneira distinto, que cada um
mantém sua própria substância” (CALVINO, João. Hebreus. São José dos Campos-SP: Fiel, 2012, p.34.
[14]
CALVINO, João. Filipenses. São José
dos Campos-SP: Fiel, 2010, p.43.
[15]
BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática.
São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 306.
[16]
CALVINO, João. Filipenses. São José
dos Campos-SP: Fiel, 2010, p.45.
[17]
Confissão de Fé de Westminster, VIII, 2.
[18]
CARSON, D.A. Comentário de João. São
Paulo: Shedd, 2007, p.468.
[19]
TRIPP, Paul David. Instrumentos nas Mãos
do Redentor. São Paulo: NUTRA, 2009, p. 100.
[20]
HENDRIKSEN, W. Filipenses. São Paulo:
Cultura Cristã, 2005, p. 477, 478.
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