Há um Deus vulnerável na manjedoura?
Existem três
comemorações que os cristãos de diferentes denominações costumam celebrar: o
nascimento de Jesus, a sexta-feira da paixão e a páscoa (a ressurreição). Nessas
duas primeiras festividades há uma comoção geral entre as pessoas. Quem nunca ouviu
falar do espírito do Natal? Nesses três momentos, tem-se o interesse de
assimilar a vida e a história de Jesus do seu nascimento até a sua ressurreição
na vida litúrgica da igreja. Quando essas celebrações são feitas de acordo com
a Palavra e não pelas invenções humanas ou sugestões de satanás, edificam
aqueles de delas usufruem.
O natal e a
sexta-feira da paixão podem produzir um sentimentalismo vão que ora usurpa de
Jesus o seu verdadeiro lugar (lega seu devido espaço ao Papai Noel ou a um
Cristo eternamente crucificado), ora subtrai-lhe a importância. Muitos sentem
um prazer mórbido e pecaminoso ao verem o menino Jesus da manjedoura ou o
chagado homem de dores, porque acreditam que como menino ou agonizante torna-se
um Deus frágil, que não exige mudança, tampouco tem poder para julgar.
Essa é a visão
de Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa) quando, no poema O Guardador de Rebanhos, afirma: “Vi Jesus Cristo descer à terra./ Veio
pela encosta de um monte/ Tornado outra vez menino,/ A correr e a
rolar-se pela erva/ E a arrancar flores para as deitar fora/ E a
rir de modo a ouvir-se de longe”[1].
Pessoa, por meio de Caeiro, retrata um Jesus que foge da mentira do céu, onde
interpretava um papel divino e no qual lhe foi negado ter um pai e uma mãe.
Tal como os
Fariseus de outrora que buscavam enquadrar Jesus em um currículo de Messias que
era incompatível ao indouto filho do carpinteiro (Mt 13.53-58; Lc 4.16-30; Jo
6.42). Segundo João, os judeus nutriam alguns preconceitos extrabíblicos que
utilizavam como critérios para aguardar a vinda do Messias: ele não teria sua
procedência conhecida (Jo 7.27); seria um operador de grandes sinais (Jo 7.31)
e que não viria da Galileia (Jo 7.42). Carson[2],
comentando João 1.46, afirma que o fato de Jesus ter sido criado em Nazaré (Mt
2.23) obscurecia seu nascimento em Belém e, assim, sua descendência do rei Davi.
A ânsia de ver
Jesus como uma simples personagem histórica é latente, nos dias dos fariseus
apóstatas ou em nossos dias em que Bultmann, teólogo alemão que nutria o desejo
impossível (pela falta de fontes) de encontrar na bíblia uma imagem de Jesus
sem sinais miraculosos (que via como mitos), mas pautado pelos fatos, assim
como o escritor português José Saramago, na obra O Evangelho Segundo Jesus Cristo, na qual defende que Jesus é fruto
da relação sexual de José e Maria[3].
Contudo, quando
Mateus descreve a genealogia de Jesus, com o intuito de mostrar que ele de fato
era da descendência de Davi, mostra de Mateus 1.1-16a a ênfase de homens
gerando filhos, todavia, em Mateus 1.16b, a ênfase está em Maria: “José, marido de Maria, da qual
nasceu Jesus, que se chama o Cristo” (Mateus 1.16b). Segundo
Hendriksen[4],
Jesus não é fruto da relação íntima de um casal, pois “não a conheceu, enquanto[5]
ela não deu à luz um filho, a quem pôs o nome de Jesus” (Mateus
1.25). Dessa maneira, José é pai legal de Jesus o que lhe dá direito ao trono
de Davi e cumpre a profecia de que um descendente de Davi sempre ocuparia o
trono (2Samuel 7.12,13), por isso, o anjo apresenta Jesus a Maria: “Este será grande e será
chamado Filho do Altíssimo; Deus, o Senhor, lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele
reinará para sempre sobre a casa de Jacó, e o seu reinado não terá fim” (Lc 1.32,33).
Berkhof[6]
defende que “se Jesus fosse gerado por um
homem, seria uma pessoa humana, incluída na aliança das obras, e, como tal,
partilharia da culpa comum da humanidade. Dessa maneira, temos certeza que
Jesus não tem contaminação alguma pelo pecado.
Segundo Costa[7],
era necessário que o Redentor tivesse duas naturezas: humana e divina, porque
aquela lhe dá a capacidade de dar perfeito exemplo a seus discípulos; cumpre o
propósito de dominar a criação; representar seu povo como novo Adão; cumprir a
lei; para que pudesse sentir os efeitos do pecado (sem se contaminar com ele);
ser tentado e oferecer o devido padrão. A natureza divina permitiu a Jesus
cumprir perfeitamente a lei; fosse capaz de salvar; derrotar definitivamente a
satanás; suportasse a culpa de seu povo e a ira de Deus; oferecer mediação ao
seu povo e apresentar-se como sacrifício perfeito.
O verdadeiro
foco para contemplarmos o Senhor está em reconhecermos que ele foi semelhante a
nós em todas as coisas, exceto no pecado (Hb 4.15). Jesus amou o Jovem rico (Mc
10.21), chorou no tumulo de Lázaro (Jo 11.35), compadeceu-se da viúva de Naim (Lc
7.11), agiu com firmeza contra os vendedores do templo (Jo 2.15), angústia e
tristeza no Getsêmani (Mt 26.37), todavia, como afirma Calvino, “em Cristo, em quem habitou a plenitude da
justiça e absoluta pureza, essas emoções estavam isentas de todo pecado”[8].
Enquanto nossas emoções atingem níveis incontroláveis capazes de controlar
nossa razão e determinar ou modificar nossos princípios, as de Jesus “sempre foram reguladas por um estrito
princípio de justiça”.
Fernando
Pessoa exclama diante do seu Jesus fictício: “e a criança tão humana que é divina”[9],
porém não existem duas formas de Jesus (homem e Deus), mas “as duas naturezas,
inteiras, perfeitas e distintas – a divindade e a humanidade – foram inseparavelmente
unidas em uma só pessoa, sem conversão, composição ou confusão; essa pessoa é
verdadeiro Deus e verdadeiro homem, porém, um só Cristo, o único Mediador entre
Deus e o homem” (CFW VIII, 2).
Portanto, da
manjedora a ressurreição Jesus é o mesmo homem e Deus e o único que pode nos
dar uma vida plena e que caminha para a eternidade. Tanto o Jesus adorado pelas
mais diferentes classes sociais (pastores e magos), aquele que é pregado do
madeiro e aquele que ressuscitou afirma que, para segui-lo, é necessário negar
a si mesmo e tomar a sua cruz (Mc 8.34). Não há vulnerabilidade na manjedoura,
mas aquele que nos ensinou a mais intensa humildade.
[1]
PESSOA, Fernando. Poemas Completos de
Alberto Caeiro. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 43.
[2] CARSON,
D.A. Comentário de João. São Paulo:
Shedd, 2007, p.160.
[3] SARAMAGO,
José. O Evangelho Segundo Jesus Cristo.
São Paulo, Companhia das Letras: 2005, p.19.
[4]
HENDRIKSEN, Willian, Comentário do Novo
Testamento: Mateus. Vol 1. São Paulo: Cultura Cristã, 2001.
[5] Apesar
de Mateus 1.25 não estar nos melhores manuscritos, consideramos que a conjunção
ἕως é pertinente e mostra que após o período de
gestação do Messias José e Maria tiveram relação sexual.
[6] BERKHOF,
Louis. Teologia Sistemática. São
Paulo, Cultura Cristã: 2001, p.308,309
[7] COSTA,
Hermisten Maia Pereira. Eu creio no Pai,
no Filho e no Espírito Santo. São Paulo, Parakletos: 2002, p.223-225.
[8]
CALVINO, João. Hebreus. São José dos
Campos-SP: Fiel, 2012, p.115.
[9] PESSOA,
Fernando. Poemas Completos de Alberto
Caeiro. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 45.
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