Insensato coração
Existe uma fábula infantil que conta a história do Homem
Biscoito de Gengibre (Gingerbread).
Essa fábula afirma que uma velhinha e seu marido estavam com muita fome e, por
isso, ela fez-lhe biscoitos de gengibre. Como não tinham filhos, fê-los no
formato da criança que quisera ter. Quando os foi tirar do forno, um deles
pulou da assadeira e saiu correndo para não ser devorado. Esse biscoito corria
depressa e ninguém podia pegá-lo, por isso, despistou a velhinha, um porco e
uma vaca. Contudo ao se deparar com uma raposa tentou fugir dela, mas diante dele
havia um grande rio. A felina sagaz, se fazendo solícita, disse que queria
apenas ajuda-lo a atravessar aquelas grandes águas e lhe ofereceu a sua calda
para, segurando nela, atravessar em segurança. Entretanto, durante o trajeto,
disse que ele era pesado e sugeriu que viesse para suas costas. Depois, ainda queixando-se
de seu peso, prometeu que ficaria melhor no seu focinho até que...! Acabou
comido pela Ardilosa.
Esse conto infantil revela um problema que temos a vida
toda: por que confiamos errado? Quantas vezes a sua confiança foi traída?
Jeremias afirma que “Maldito o homem que confia no homem, faz da carne
mortal o seu braço e aparta o seu coração do SENHOR!” (Jeremias
17.5) e “Bendito
o homem que confia no SENHOR e cuja esperança é o SENHOR” (Jeremias 17.7). Dessa maneira, é uma maldição confiar
mais no homem do que em Deus e é uma bênção esperar no Senhor, apesar das
adversidades em que vivemos. Porque então entre a bênção e a maldição somos
propensos a escolher aquela em detrimento desta?
Esse problema que Jeremias nos apresenta não está
distante daquilo que Moisés recomenda ao povo em que escolher a vida é guardar
o mandamento que foi dado, amar o Senhor Deus e andar nos seus caminhos
(Deuteronômio 30.16), enquanto, escolher a morte seria desviar o seu coração,
não ouvir e, seduzido, adorar outros deuses e os servir (Deuteronômio 30.17).
Se não servir ao Senhor, como ele deseja e claramente expressa em sua Palavra,
é caminhar para a morte e obedecê-lo é certeza de vida, por que essa inclinação
a se escolher a morte e não a vida?
Segundo Jeremias esse procedimento marca a nossa
existência. Aquele que coloca a sua confiança no Senhor é comparado a uma “árvore
plantada junto às águas, que estende as suas raízes para o ribeiro e não receia
quando vem o calor, mas a sua folha fica verde; e, no ano de sequidão, não se
perturba, nem deixa de dar fruto.” (Jeremias 17.8). O Profeta está
fazendo uma citação do Salmo 1.3. Nesse Salmo, vemos, também, a comparação entre
o justo e o ímpio. Este, por confiar no homem, anda no conselho de outros
ímpios, se detém no procedimento dos pecadores e gosta da companhia daqueles
que blasfemam contra o Senhor e suas obras. Entretanto, aquele não segue o
itinerário esse intinerário, porque tem algo melhor: “antes o seu prazer está na lei do SENHOR, e na sua lei medita de dia e
de noite” (Salmo 1.2).
Portanto, se compararmos Jeremias e o Salmo 1, veremos
que a diferença entre o justo (aquele que espera no Senhor) e o ímpio (aquele
que espera no homem) está no seu prazer, enquanto aquele sente prazer na
Palavra, este sente prazer em um procedimento que, se não reprovado pelos
homens, não glorifica a Deus. Se o procedimento do ímpio é reprovado por Deus e
conduz a um abismo fatal, por que sente prazer na morte e não na vida? Por que
alguém pode sentir prazer naquilo que lhe causa mal? Como alguém pode sentir
prazer nas drogas, no roubo, na prostituição, etc?
Segundo Charles Leiter, na obra Justificação e Regeneração, afirma que o pecado é universal
(tirando Jesus, todos os homens são pecadores independente da idade, raça ou
classe social), atinge todas as partes do homem (por isso ninguém pode ser vir
a Jesus se não for trazido arrastado – João 6.44), irracional (não existe
pecado que seja sábio ou uma boa escolha), enganoso (parece bom a primeira
vista, mas é desastroso), endurecedor (quando mais imerso no pecado menos ele o
incomoda), escravizador (a grande mentira do pecado é que não se pode viver sem
ele), degradante (é capaz de fazer degenerar até o mais distinto dos homens) e
pervertido (o pecado não é bonito, mas perverso).
Afinal de onde nasce o pecado? Jesus afirma que do coração
do homem, quando explica aos seus discípulos: “do coração do homem procedem os maus pensamentos, homicídios,
adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos e blasfêmias” (Mateus
15.19). Portanto, o problema do homem não é uma questão de mera preferência ou
gosto, mas do coração. Jeremias mostra que nosso coração tem características
que o inclinam para o mal e não para o bem:
-
o coração é enganoso: o termo
hebraico עָקֹב (‛âqôb) utilizado aqui transmite a
ideia de terreno tortuoso. Dessa maneira o coração do homem é um terreno
acidentado em todos os aspectos (não há parte melhor em nosso coração, assim
como um pão embolorado está todo embolorado) que faz cair todo aquele que
transita por ele;
-
o coração é corrupto: o termo
hebraico אָנַשׁ ('ânash)
utilizado aqui transmite a ideia de doente. O coração humano é incapaz de
escolher adequadamente devido a doença que o aflige;
- o coração não pode ser conhecido com intimidade
por ninguém senão Deus: ninguém consegue conhecer o coração do homem
com profundidade exceto o Senhor que afirma: “Eu, o SENHOR, esquadrinho o coração, eu
provo os pensamentos; e isto para dar a cada um segundo o seu proceder, segundo
o fruto das suas ações.” (Jeremias 17.10). Não existe nada velado
para Deus. O Salmista nos ensina: “o
SENHOR conhece (com intimidade) o caminho dos justos, mas o caminho dos ímpios
perecerá” (Salmo 1.6). Dessa maneira, quando colocamos nosso prazer na Lei
dEle a cumprimos ou quando somos seduzidos pelo mundo e sua felicidade falsa,
Ele de tudo o sabe.
O nosso coração é tão
complexo que nem mesmo nós podemos conhecê-lo. Quantas vezes você foi
surpreendido fazendo algo que acreditava que jamais faria? Por esse motivo João
Calvino, o reformador de Genebra, afirma no primeiro livro das Institutas, “o homem jamais chega ao puro
conhecimento de si mesmo até
que haja antes contemplado a face de Deus, e da visão dele desça a examinar-se
a si próprio”.
Quando nosso coração assumiu essas características? Deus
o fez assim? Não, a Bíblia diz que “viu
Deus tudo quanto fizera (inclusive o coração do homem), e eis que era muito bom.” (Gênesis 1.31). Segundo a Confissão de
Westminster: “o homem, em seu estado de
inocência, tinha a liberdade e o poder de querer e fazer aquilo que é bom e
agradável a Deus, mas mutavelmente, de sorte que pudesse cair dessa liberdade e
poder” (IX,2). Dessa maneira, a diferença que temos para com Adão e Eva,
antes do pecado, era que eles possuíam livre-arbítrio, ou seja, a possibilidade
de escolher algo sem ser inclinado para o bem ou para o mal. Após o pecado de
nossos primeiros pais (ao comer o fruto que lhes era proibido, o que chamamos
de pecado original) somos sempre inclinados a fazer aquilo que desagrada a
Deus.
Jeremias compara o ser humano que possui esse coração
enganoso (tortuoso) e corrupto (doente) à perdiz que, segundo lenda da época do
profeta tomava ovos que não eram os seus para chocá-los (Jeremias 11.17). O
Profeta está mostrando que assim como a perdiz, por razões naturais, choca ovos
que não lhe pertencem por que não os consegue distinguir. Guiados pelo coração
podemos adorar ao homem no lugar de Deus. Paulo diz aos Romanos: “tendo conhecimento de Deus, não o
glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus
próprios raciocínios, obscurecendo-lhes o coração insensato. Inculcando-se por
sábios se fizeram loucos”.
Entendamos que até mesmo o mais piedoso dos homens pode
ser iludir com falsas promessas humanas, todavia Jeremias não esta falando
disso. O propósito do Profeta é mostrar a conduta daquele que confia nos
ditames de seu coração. Esse indivíduo adora tanto o homem quanto Deus sem
saber a diferença entre eles, por isso, seu procedimento é reprovado. Esse
atalaia do Senhor está chamando a atenção do povo que confiava no templo e na
lei na mesma proporção que buscava os ídolos pagão, por isso, até as práticas
mais piedosas eram inteiramente reprovadas, porque partiam do coração e não da
certeza advinda da fé.
Vemos aqui o perigo de ouvirmos conselhos como: “ouça a
voz o seu coração” ou “deixe o seu coração guiar suas escolhas”. Nosso coração
não tem condições naturais para isso e, poderíamos, assim, dizer como Nana
Caymmi: “só louco amou como amei [...] ó
insensato coração, porque me fizeste sofrer”. Usar o coração como uma
bússola com certeza nos levará para um perigoso desastre. Só a Palavra,
iluminada pelo Espírito Santo, pode nos fornecer verdadeira orientação.
Como nosso coração pode ser consertado? Jeremias afirma: “Eis aí vêm
dias, diz o SENHOR, em que firmarei nova aliança com a casa de Israel e com a
casa de Judá. ão conforme a aliança que fiz com seus pais, no dia em que os
tomei pela mão, para os tirar da terra do Egito; porquanto eles anularam a
minha aliança, não obstante eu os haver desposado, diz o SENHOR. Porque esta é
a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles dias, diz o
SENHOR: Na mente, lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhas
inscreverei; eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo.”
(Jeremias 31.31-33). Jesus é quem firma essa nova (renovada) aliança em seu
sangue (Mateus 26.28; Lucas 22.20; 2Co 3.6).
Portanto, por nós mesmos não temos condições de escolher
entre confiar em Deus ou confiar no homem, somos como a perdiz que mal sabe
distinguir seus ovos isso é por causa de nosso coração enganoso e corrupto.
Contudo Deus conhece nosso coração, enviou-nos seu Filho que nos deu um novo
coração, um coração de carne do lugar do coração de pedra que tínhamos, por
isso, não nos guiemos pela sabedoria do coração, mas do Senhor.