A
Sinistra liberdade da gaiola
“[...] o que foi semeado em terra boa, este é o que ouve a
Palavra, e a entende e dá fruto [...]” (Mateus 13.23).
Arvoredo é uma cidade típica de interior onde as pessoas
ainda se sentam a porta para jogar conversa fora. Todos se conhecem e o homem
mais sábio da cidade era o seu Antônio, o farmacêutico, que entre unguentos e
injeções tinha uma outra paixão: os pássaros tinha viveiros e viveiros
repletos, mas tinha predileção por quatro canários que ficavam na parede do alpendre.
Diferente dos outros esses tinham apelidos que se sobrepunham às oficiais
nomenclaturas científicas e cantos pitorescos. Antônio os chamava de Caifás,
Demas, Um talento e Paulo. Esses canários, por serem preferidos aos demais,
eram tratados não por empregados, às vezes relapsos, mas pelo próprio Antônio,
que, se deleitavam o cântico matinal, que, como sublime quarteto, deixavam seu
café da manhã mais saboroso. Às vezes deliciava-se tanto com aquele canto
natural que se atrasava em chegar no seu estabelecimento.
Existem muitos pássaros vagabundos que vivem da tentativa
de roubas a água cristalina e o alpiste dourado daquele Versaille de arame
prateado e a abundância só fazia aquelas aves nobres mais altivos e orgulhosos,
mas havia um pássaro maltrapilho que se diferenciava dos outros. Não roubava, muito
menos insultava aqueles lordes emplumados, mas
falava a todos de um mundo muito mais rico e verdadeiro. Era chamado de
Evangelista e dizia que eles estavam presos em suas gaiolas e que aquela vida
era uma mentira. Acusava-os de idolatria, porque no lugar de adorarem o Criador
adoravam a criatura. Alguns pássaros começaram a ouvi-lo, outros o tinham por
um tagarela. Entre os que gostavam dele estavam três dos canários prediletos.
Caifás, cheio de sua natural empáfia, chamava-o de louco e herege. Como renegariam
o Antônio que com tanto amor cuidava deles para seguirem devaneios infundados.
Não demorou muito tempo até Demas e Um Talento fugirem de
suas gaiolas. Aproveitaram um descuido e voaram com toda as forças. Antônio
ficou desolado, não queria se alimentar e mesmo que Caifás fizesse estripulias
musicas nada o fazia feliz. Os dois fugitivos, como nasceram em cativeiro, não
conheciam as adversidades da vida. Decidiram seguir caminhos diferentes, mas um
talento logo percebeu que em todo canto haviam inúmeros predadores prontos para
devorá-lo. Com muito medo, sentiu saudade da proteção que a gaiola oferecia.
Não demorou muitos dias a aparecer na janela do farmacêutico ansioso a ser
reintegrado naquele mundo de constância e proteção.
Demas resistiu mais, contudo percebeu que a comida
precisava ser encontrada e, como era preguiçoso, depois de uma curta estadia na
liberdade logo retornou a mesma gaiola onde tinham a sinistra liberdade de
saber em qual puleiro veriam aquela vida de escravidão e conforto.
Caifás os recriminava vociferando que deveriam cantar com
mais gosto pela grande misericórdia que receberam. Dizia que outro dono teria
fechado a porta ou cortado as asas deles. Paulo ouvia as histórias deles e se
tornara um dos poucos a procurar as palavras de Evangelista. Era estranho,
porque mesmo tomando conhecimento das dores além da gaiola e da escassez que
poderia enfrentar seu mundo era maior do que a extensão daqueles arames e há
muito tempo não entoava seu canto ao dono que os alimentava, mas ao soberano Criador
que lhe dera a vida e proveria suas necessidades.
Depois da fuga dos pássaros, Antônio se tornara muito mais
cuidadoso no trato e não oferecia brechas. Naquele palácio que virara Alcatraz,
Paulo pedia uma oportunidade. Houve um dia especialmente quente, Caifás nem
conseguiu chegar as oitavas que estava acostumado. Entre uma partitura e outra
bebericava a sua água, sem em temperatura ambiente, mas aquela noite foi
memorável. Uma ventania se armou antes da chuva que fez com que a gaiola de
Paulo caísse e a porta se abrisse. O porvir se mostrava terrível, mas
incrivelmente nada mais lhe importava. Não ouviu as súplicas de Caifás, não
percebeu as lágrimas de Um talento, tampouco o deboche de Demas. Mergulhou na
amplidão em um voa que não teve mais fim.
No outro dia, pela manhã, na hora do trato, Antônio viu a
gaiola amassada e o deu como morto e de fato estava, pois já não era ele Paulo
que vivia, mas Cristo é que viveria nele agora.
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