Eu quero ter um milhão
de amigos?
Qual foi o momento em que o amigo passou a ser um
ícone na tela de um computador?
O conceito de amizade e relacionamento sofreu sérias
influências dos avanços tecnológicos, pois há uma necessidade de ser ter muitos
e muitos amigos e até seguidores, todavia, nessas amizades superficiais, os
supostos relacionamentos não suportam as adversidades e as opiniões contrárias.
Nunca se teve tantos amigos presos nos ícones coloridos e felizes emoldurados
pela tela de LED, mas nunca se viu tanta solitária e carente de contato humano.
No muito pragmático, em que vivemos, anseia-se por construir muitas e muitas
amizades, mas que podem ser desligadas ou excluídas sem grandes confrontos e
desgastes pessoais. O pragmatismo fez o amigo se tornar um ícone manipulável. A
amizade virtual foi forjada por uma geração que tem medo do outro, mas continua
tendo necessidade de se relacionar.
O ser humano é essencialmente um ser social, que se
relaciona, porque, criado a imagem e semelhança do Deus (Gn 1.26), uno e trino,
ou seja, do único Deus que vive em relacionamento perfeito entre as pessoas do
Pai, do Filho e do Espírito Santo, é angustiante e doentio ao homem caminhar
sem o convívio dos outros. Aristóteles afirmava: “fica evidente, pois, que a Cidade é uma
criação da natureza, e que o homem, por natureza, é um animal político [isto é,
destinado a viver em sociedade], e que o homem que, por sua natureza e não por
mero acidente, não tivesse sua existência na cidade, seria um ser vil, superior
ou inferior ao homem. Tal indivíduo, segundo Homero, é “um ser sem lar, sem
família, sem leis”, pois tem sede de guerra e, como não é freado por nada,
assemelha-se a uma ave de rapina”
(Política, Lv I, Cp. 1).
Tal como Isaías, devemos reconhecer: “sou homem de lábios impuros, habito no meio de um povo de
impuros lábios” (Is 6.5) e, por causa dessa realidade de depravação total (ou
radical) todos os nossos relacionamentos nos são árduos desafios, porque
esperamos o que o outro não pode ou não quer nos dar e, igualmente, nos
oferecemos com diversas cautelas.
Dessa maneira, Salomão afirma: “como o ferro com o ferro se afia, assim, o
homem, ao seu amigo” (Pv 27.17). Assim como um instrumento precisa estar
com suas cordas esticadas de tal maneira que produzam um som agradável e as
facas precisam ser gastas na pedra para ter um corte eficiente, os
relacionamentos nos ensinam mutuamente sobre nos mesmos. Todos os embates que
temos com o outro envolvem pecados nossos ou pecados alheios, que precisam ser
mortificados em Cristo Jesus.
Quando nossa geração optou por
um relacionamento mediado pelas redes sociais, eliminou muito dessas
adversidades, porque o surgimento dos problemas foram resolvidos com a fuga, ou
seja, excluir do meu rol de amigos determinada pessoa, mas se perdeu muito em
crescimento pessoal.
No momento em que convivemos
apenas com indivíduos que pensam a nossa maneira, falam apenas aquilo que
queremos ouvir (futilidades), construímos um mundo previsível, impenetrável,
mas uma realidade que dificulta nossos aprendizado e crescimento, porque aprendemos
imitando, crescemos ao sermos confrontados. Apenas quando os músculos são
ofendidos pelo movimento repetido e doloroso é que se enrijecem e ganham
volume. Músculos ociosos atrofiam. No instante em que afiamos e nos deixamos a
afiar pelo outro, é que nos construímos e ajudamos a construir pessoas
melhores.
Em nossos dias, as pessoas querem
ter seguidores, mas, ao almejarmos que as pessoas nos sigam, limitamos nosso
interesse de seguir alguém e de nos colocar a serviço do outro. Jesus não
vivia, tampouco pregava em busca de seguidores, apesar de chamá-los e tê-los,
pois ao se revelar como o pão da vida muitos deixam de segui-lo, todavia não titubeou
em convidar os doze a seguir o mesmo caminho (Jo 6.66,67). A amizade cresce no
solo fértil da verdade. Apesar de ser o caminhos, a verdade e a vida (Jo 14.6),
Jesus não se portou jamais com um tirano, mas sendo Mestre e Senhor a quem
todos devem seguir, instantes antes de morrer, tomou a toalha e, como um
escravo, lavou os pés daqueles que tinha por amigos (Jo 15.15).
O amor de Jesus é o maior amor
que existe, porque ela dá a vida pelos seus (Jo 15.13), todavia há uma condição
para ser amigo de Cristo: fazer aquilo que ele manda (Jo 15.14). O Senhor nos
mostra que o vínculo da amizade se constrói sobre o perdão, pois, em Jo
21.15-18, Jesus trata com ternura a Pedro que o negara.
Atualmente, é comum alguém ter
milhões de amigos, satisfazendo o antigo desejo de Roberto e Erasmo na música Eu quero apenas. Aristóteles na Ética a Nicômaco (Lv VIII, Cap. 6)
afirma que os mais velhos não se firmam facilmente em amizade, mas trabalham e
conservam aquelas que se tem. Segundo o filósofo de Estagira, a amizade precisa
de tempo e empenho. Ser amigo de alguém é se tornar responsável por outra
pessoa, assim como a raposa disse ao Pequeno Príncipe “Tu te tornas eternamente responsável, por aquilo que cativas” (Antoine
de Saint-Exupéry, Cap XXII, p.39).
Salomão afirma em Provérbios:
“O homem que tem muitos amigos sai perdendo; mas há amigo mais chegado do que
um irmão” (Pv 18.24). Não adianta nada ter muitos amigos se não se pode contar
com nenhum deles nos dias maus. Na multidão de amigos, poucos serão aqueles que
ficarão presentes quando a única coisa a fazer é ajudar. Dos doze discípulos
apenas o amado fica ao pés da Cruz.
Os atuais moldes de amizade
produzidos pela cultura digital ampliaram de maneira jamais pensada os
horizontes para conhecer e se comunicar com o outro por mais longe que ele
esteja, todavia limitou os laços interpessoais, a conversa franca e até mesmo a
discussão construtiva que sempre existiu entre amigos. Se Jonatas fosse apenas
um ícone na tela de Davi, jamais teria chorado por ele e amparado seu filho na
necessidade. Dessa maneira, devemos querer ter amigos sinceros, mas ter um
milhão não é um bom negócio.
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