As possibilidades nos dias maus: o lidar com as situações
favoráveis ou adversas
Charles Haddon Spurgeon, no sermão 320, afirma, a partir de Filipenses
3.11 que “o contentamento não é uma inclinação natural do homem. Cobiça,
descontentamento e murmuração são tão naturais ao homem como espinhos e cardos
ao solo[...] o contentamento é uma das flores do céu. Se nós a queremos, ela
tem que ser cultivada”
Algumas pessoas se equivocam acreditando que nas situações de bonança o
viver contente é fácil, contudo será que se Ló atentasse firmemente para o fato
de que as campinas bem regadas de Sodoma e Gomorra era povoada por pecadores
contra o Senhor (Gn 13.10-13), os quais o afligiriam com o comportamento
libertino desses insubordinados (2Pe 2.7). Se compreendesse que nessa cidade
perderia sua mulher e suas filhas se tornariam propensas ao incesto, com
certeza, teria buscado paz com seu tio Abrão (Gn 13.7,8). Nabal, tão como o
Rico da parábola de Jesus (Lc 16.20-31), não conseguiu dividir o que tinha a
fim de auxiliar os mais necessitados (1Sm 25.3-18). O Jovem Rico não consegue
abrir mão de seu dinheiro e continua a servir à lei, a Cristo (Mt 19.17-22).
Em outras ocasiões pessoas, tal como o povo de Israel, no deserto, diante
das dificuldades lembram-se dos peixes, pepinos, melões, cebolas e alhos (Nm
11.5). Jesus mostra que, no solo rochoso das perseguições ou no espinhoso das
tentações do mundo, os crentes insipientes não conseguem criar raízes ou
desenvolverem-se adequadamente.
Vemos, à luz das Escrituras Sagradas, que ora a riqueza, ora as
dificuldades podem apresentar suas armadilhas para as almas que não possuem um
coração resignado. Contudo Paulo mostra que vive com tem. Ele usa o termo grego
autárkes (αὐτάρκης),
autossatisfação.
Viver com aquilo que se tem é um desafio especial para nossa geração. Quando
ouvimos as histórias de nossos antepassados, que viviam sem a maioria dos bens
de consumo que julgamos essenciais, compreendemos o que Karl Marx (1818-1883) quis
dizer com fetiche do mercado. Marx entendia que, quando o produto sai da fábrica,
ganha um valor infundado. Para muitas pessoas, a panela de arroz, a panela de
pressão elétrica e a smart tv proporciona muito mais que prazer, mas o
acesso a um patamar social, continuamente, a ser alcançado. Para o pensador
prussiano, essa realidade doentia não é muito diferente daquela em que o povo
do deserto substituiu Moisés pelo bezerro de ouro, pois esta do homem a
capacidade e compulsão de atribuir valor a elementos de cálculo fácil.
A grande variedade de produtos que facilitam nossa vida, à contragosto de
muitos, não nos fez membros de um geração excepcionalmente feliz, mas cada vez
mais dependente de chips e baterias, onde as relações são cada vez mais
artificiais. Entretanto o contentamento do Apóstolo não o mostra como estóico (doutrina
filosófica que pregava a resignação ao destino), tampouco um alienado de tudo e
todos, mas alguém que, na sua intimidade com Cristo, sabe que tudo nesta
presente vida é fugaz e pronto para fenecer. Buscar as riquezas como soberanas
é rebelar-se contra Deus, pois Jesus afirma: “ninguém pode servir a
dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um e amar ao outro, ou se
devotará a um e desprezará ao outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas”
(Mt 6.24).
Essa realidade de Paulo (veja 2Co 11.23-27), como afirmara Spurgeon, só
pode surgir pelo responsável cultivo. Paulo mostra, que diferente dos exemplos
anteriores, sabe ser humilhado (usa a mesma palavra que usou em Fl 2.8 para
descrever Jesus em seu
Estado de humilhação) e honrado, assim como passar pela
abundância e fartura, como pela escassez e necessidade (Fl 4.12). Contudo
nesses momentos afirma conhecer o segredo ou mistério (myeo – μυέω).
Na época de Paulo havia religiões de mistério em que seus adeptos eram
submetidos a provas que os levavam a graus mais altos, nos quais conheciam os
segredos daquele grupo. Paulo está mostrando à comunidade de Filipos que os
momentos fáceis e difíceis não lhe corromperam, porque lê conhece o segredo para
permanecer intacto nessas circunst6ancias diversas: “tudo posso naquele que
me fortalece” (Fl 4.13).
Filipenses 4.13 pode ser profundamente distorcido pela teologia da
prosperidade prometendo, algo que Paulo não disse. O verbo poder utilizado por
Paulo aqui é ischyo (ἰσχύω), ou seja, estar apto, ter
boa saúde ou força para fazer algo. Esse poder não está nele próprio, mas
naquele que o fortalece, alguns manuscritos, enfatizam que é Cristo. O tudo que
ele só consegue suportar em Cristo é o estar contente na humilhação e na honra;
na fartura e na fome ou na abundância ou escassez.
Portanto, Paulo
mostra que Jesus nos dará, como foi oferecido a José do Egito, a disposição
para ser honrado da casa do Pai ou humilhado pelos irmãos na cisterna; ser
valorizado por Potifar ou caluniado pela esposa propensa ao adultério;
esquecido na prisão ou elevado por Faraó. O Senhor nos dará os dias de fartura
para o nosso preparo e os sofrimentos para o nosso quebrantamento, porém, em
tudo, poderemos suportar (quer a vaidade ou o desprezo) focados em Jesus.