Os dois lados de uma
arma
Uma frase latina atribuída ao franciscano Guilherme
de Ockham (1285-1349) diz: “defende me
gládio, defendam te calamo”, ou seja, defende-me com a espada e eu te
defenderei com a pena (objeto para escrever: caneta ou lápis). Segundo Reale et
al,
essa frase foi dita quando Guilherme fugiu do convento de Avignon, onde era
acusado de heresia, para se refugiar junto do Imperador Ludovico o Bávaro em
Pisa. Esse religioso entendia que o poder das palavras era maior que o poder das
armas.
No último dia 7, dois homens entraram no jornal
satírico francês Charlie Hebdo fortemente armados, com treinamento militar e
deixaram 12 mortos e 11 feridos. Esse fato gerou uma comoção em todo o ocidente
e diversos chefes de Estado manifestaram condolências e repúdio a esse ato de
terror, inclusive a presidente Dilma, apesar de outrora defender que o diálogo
da ONU com terroristas fosse melhor que uma postura mais dura contra o Estado
Islâmico (grupo terrorista que controla parte da Síria) que degolam turistas.
Com certeza, nesses dias conturbados que iniciaram o
ano de 2015, em que os extremistas islâmicos não esperaram até o fim de janeiro
para apresentar seus desejos de morte, esse pensamento de Ockham se faz muito pertinente,
porque o estopim das guerras não está no disparo das armas, mas nas ideias que
as engatilharam. É uma terrível ingenuidade acreditar que apenas uma das
extremidades da arma pensa, ambos absorvem influências e as transformam em
pensamentos e ideologias.
Cazuza (1958-1990) clamava: “ideologia, eu quero uma pra viver”. Segundo Japiassú et al,
esse conceito, cunhado pelos filósofos franceses do sec. XVIII que estudavam a
origem da ideias, evoluiu até significar em nossos dias “um conjunto de ideias, princípios, valores que refletem uma
determinada visão de mundo, orientando uma forma de ação, sobretudo uma prática
política”.
É impossível viver alheio a um conjunto de ideias,
princípios e valores que norteiam a nossa maneira de interpretar o mundo ao
nosso redor. Dessa maneira, ao analisarmos o ato terrorista na França precisamos
entender as ideologias que motivaram os dois lados da arma. Os terroristas
mulçumanos partem do pressuposto de que o Alcorão é “o eterno milagre, o último livro de Deus enviado para a orientação da
humanidade”.
O Alcorão tem a sua origem no próprio Allah (Alcorão,
Na Nissá, 4.82), que é a testemunha
mais fidedigna (Alcorão, Al An'Am,
6.19) e é, por meio desse livro esclarecedor, que seus adeptos são perdoados e
encontram o caminho reto para a salvação e luz que precisam (Alcorão, Al Máida, 5.15,16).
Aqueles que não acreditam no conteúdo do Alcorão
serão castigados, enquanto os crentes (no Alcorão) terão recompensa infalível
(Alcorão, Al Inxicac, 84.20-25), por
isso, o Livro sagrado dos mulçumanos prevê que “o castigo, para aqueles que lutam contra Allah e contra Seu
Mensageiro, e semeiam a corrupção na terra, é que sejam mortos, ou
crucificados, ou lhes seja decepada a mão e pé de lados opostos, ou banidos.
Tal será, para eles, uma desonra neste mundo e, no Outro sofrerão severo
castigo” (Alcorão, Al Máida,
5.33).
Segundo o Instituto Brasileiro de Estudos Islâmicos,
a palavra Islam significa submissão, todavia na sua origem etimológica
significa paz. Dessa maneira, o islamismo pode ser definido como uma submissão
sem reservas a vontade de Allah.
Entretanto extremistas não partilham dessa paz e propagam o terror. Segundo
Teles
e Souza
o “fundamentalismo”
islâmico tem sua origem na ação norte americana de patrocinar, armar e treinar
afegãos como Bin Laden para lutarem contra os invasores soviéticos, pois era
melhor tê-los no poder e seus países do que legar as fontes de petróleo do
mundo ao poder comunista em plena Guerra-Fria.
Ainda usando Ockham, porém de forma parafraseada,
os princípios religiosos podem funcionar alheios a razão, porque o estudo
teológico de uma religião ou seita pode deixar de ser uma ciência e passar a
ser “um complexo de proposições mantidas
em vinculação não pela coerência racional, mas sim pela força de coesão da fé”.
Segundo o Sheikh Muhammed Salih Al-Munajjid,
jihad significa esforço e gasto de energia pessoal, ou seja, o mulçumano deve
se esforçar
“para fazer a palavra de
Allah suprema e para estabelecer a sua religião (o islam) na Terra”.
Contudo o Islã não defende que se deve matar o não mulçumano, mas buscar
atraí-lo para a única religião aceitável para Allah. De fato, o Alcorão afirma:
“combatei até terminara intriga, e
prevalecer totalmente a religião de Allah. Porém se se retratarem, saibam que
Allah bem vê tudo quanto fazem” (
Al
Anfal, 8.39).
O Sheikh Muhammed Salih Al-Munajjid “Jihad contra os kaafirs (não muçulmanos) e
hipócritas são de quatro tipos: com o coração, com a língua, com os bens e com
si mesmo (combate físico). Jihad contra os kaafirs é ao longo das linhas de
luta física enquanto a jihad contra os hipócritas é mais ao longo das linhas de
se usar palavras e idéias”.
Entretanto os tementes, a quem é prometido um céu de repouso, bebidas, frutas e
mulheres castas (Alcorão,
Sad,
38.49-52), aqueles que foram mortos ou morreram pela causa de Allah
“serão infinitamente agraciados por Ele,
porque Allah é o melhor dos agraciadores” (Alcorão,
Al Hajj, 22.58).
Se a postura pacífica do islamismo pode ficar reservada
nas mesquitas e nos centros de aprendizado, a teologia fanática e não
fundamentalista é a que seduz jovens carentes de objetivos sólidos. Aos poucos
a teologia liberal se desenvolveu a tal ponto de fazer com que as pessoas
desacreditassem na Palavra, vê-la como um mito fútil terrivelmente e suplantada
pela ciência. Segundo Machen,
o teólogo liberal passou a negociar com a razão científica o direito de
continuar existindo, todavia em uma postura desacreditada e vã.
A mesma França que viu Calvino e a Europa que ouviu
as teses de Lutero vê os cristianismo diminuir cedendo lugar para o Islamismo.
Em 2008, a igreja Católica anunciou oficialmente que o número de mulçumanos
havia ultrapassado o número de católicos na Europa,
haja vista, que em 1990 o número de mulçumanos era de 568.000 e em 2010 era de
3,5 milhões. Essa
realidade não diferente na América, pois, nos Estados Unidos, o número de
mulçumanos duplicará nas próximas décadas de 2,6 para 6,2 milhões.
A Europa que ridicularizou a Bíblia vê o Alcorão
doutrinar sua juventude. A população que foi educada a entender que não existem
padrões absolutos, agora ouve a Mesquita ditar as normas de conduta. Enquanto
igrejas viraram museus, mesquitas foram erigidas.
Com certeza não se pode de maneira alguma ligar o
Islã esses atentados, pois existem pessoas pacíficas e honradas nas diversas
mesquitas do mundo, mas assim como a Inquisição ou os profetas Zwickau
deturparam a fiel pregação, fanáticos podem distorcer o ensinamento oficial do
Alcorão. Esses terroristas estão com a arma apontada não para uma pessoa, mas
para uma ideia e esta arma está carregada.
Segundo Anne Sinclair, a revista Charlie Hebdo
começa a ter atritos com o mundo islâmico desde que, em 2002, decidiram
publicar um artigo do livro de Oriana Fallaci, no qual tecia críticas ao
islamismo, assim como, em 2006, publicou caricaturas de Maomé publicadas pelo
jornal dinamarquês Jyllands Posten, o que
levou a um atentado em 2011.
Essa revista é adepta de um humor
ácido a serviço de todo o arcabouço ideológico de nossos dias e, por isso,
satiriza a política e tem um gosto por fazer piadas de decência questionável da
religião católica, do próprio cristianismo e do islamismo. Aristóteles, na
Poética, entende que é natural ao homem imitar desde a infância, assim como as
artes da mesma maneira imitam. Homens nobres imitam ações nobres, todavia
pessoas de má índole imitam aquilo que é baixo, por isso, sendo a comédia a
imitação de pessoas inferiores, ou seja, daquilo que é cômico e grotesco e a
tragédia a imitação de ações nobres, os poetas tendiam a esta ou aquela segundo
suas inclinações naturais.
O tutor de Alexandre entendia que a
comédia tendia a incentivar sentimentos baixos que não viriam edificar o
indivíduo. A comédia e a caricatura possuem um limite complexo na comunicação,
porque ele não estabelece uma discussão, mas expõe um pensamento que pede o
riso como aprovação e entendimento. Portanto, se rir ao ver uma charge ou
assistir uma comédia implica que há entendimento e concordância, todavia o
contrário demonstra que não houve entendimento e se subentende que, por isso,
não houve concordância.
Essa atividade não é nova, já na
Antiguidade o dramaturgo grego Aristófanes (447-385 a.C.) transformou o
respeitado Sócrates (469-399 a.C.), o modelo de mestre para Platão, em um
charlatão que corrompia a juventude. Esse comediante grego só reproduziu em
suas páginas o pensamento dos sábios de sua época que se incomodavam com a
maneira como Sócrates os contatava ignorantes pela ironia. Na literatura
trovadoresca, as cantigas de escárnio e maldizer cumpriam o mesmo papel que
programas como Pânico e o canal Porta dos Fundos tentam empreender. O direito a
liberdade de expressão é muito caro a nossa cultura não pode nos levar a uma
libertinagem que exclua qualquer possibilidade de agir com bom senso.
Não estamos defendendo ou endossando
nenhum ato terrorista, mas precisamos entender que nos dois lados da arma
existem pessoas que avançaram limites por questões ideológicas. Assim como
fanáticos islâmicos entraram no Charlie Hebdo com AK-47, outrora e de maneira
insistente com lápis em punho satirizaram a religião alheia.
Quem unirá os dois lados dessa para
que os futuros encontros não sejam mortais novamente? Paul David Tripp, comentando Jo 17.20-23,
afirma que Jesus veio ampliar nosso padrão de união. O Mateus, publicano
(corrupto que servia aos desígnios de Roma) e Simão, zelote (adepto da ação
armada contra Roma) só podem estar no mesmo grupo, porque o modelo de unidade é
aquele vivenciado desde pela Trindade. Ninguém pode viver sem um conjunto de
ideias pelas quais abordará o seu mundo, portanto, apenas as ideias
provenientes da Palavra podem trazer verdadeira união entre o Ocidente e
Oriente.