Calvino:
ditador ou Reformador?
Calvino é uma figura mal compreendida, porque, devido a grande influência
católica romana de nosso país, é pintado como um ditador que misturou a sã
pregação da Palavra a uma busca desenfreada por domínio político usando de sua
posição para calar seus inimigos. Dom Estevão Tavares Bettencourt O.S.B.
(1919-2008), proeminente teólogo da igreja de Roma do séc.XX, transmite essa
ideia quando afirma: “em 1555, Calvino havia conquistado vitória sobre todos
os seus inimigos. Nenhum pode mais lhe abalar a posição de ditador religioso, e
também político, na sua ‘Roma protestante’, para onde afluíam os emigrados
protestantes da França, da Itália e da Inglaterra” (Crenças, religiões,
igrejas e seitas: quem são?, 1995, p. 31).
A fé romana equivoca-se ao afirmar que Lutero foi o precursor da Reforma
Protestante do séc. XVI. De fato, o “o destino de Martinho Lutero e o da
Reforma se tornaram inexoravelmente ligados, de modo que, agora, tentar imagina
a Reforma sem Lutero é como pensar o cristianismo primitivo sem Paulo”
(Timothy George, Lendo as Escrituras com os Reformadores, 2015, p.136),
todavia não podemos esquecer que antes do Reformador alemão a igreja contou com
homens como John Wycliffe (1320-1384), John Huss (1369-1415) e Savonarola (1452-1498).
O historiador Alderi de Souza Matos (Fundamentos da Teologia Histórica, 2008, p.155)
afirma que “se Zuínglio foi o fundador da tradição reformada, João Calvino,
nascido na pequena Noyon, no nordeste da França, foi seu grande consolidador e
defensor”.
Uma boa resposta a crítica mordaz de Dom Estevão a Calvino como o Papa da
Roma Protestante estaria na descrição que Montegomery Boice (in Steve Lawson, A
Arte Expositiva de João Calvino, 2012, p. 15), faz do Reformador de Genebra:
“Calvino não tinha outra arma senão a Bíblia [...]. Ele pregava a Bíblia
todos os dias, e, sob o poder desta pregação, a cidade começou a ser
transformada. Conforme o povo de Genebra adquiria conhecimento da Palavra de
Deus e era transformado por ela, a cidade tornou-se, como John Knox chamou-a
mais tardem uma Nova Jerusalém, de onde o evangelho espalhou-se para o resto da
Europa, para a Inglaterra, e para o Novo Mundo”.
Sobre esse poder avassalador da Palavra Lutero afirma: “Veja meu
exemplo. Eu me opus às indulgências e a todos os papistas, mas nunca pela força.
Simplesmente ensinei, preguei, escrevi a Palavra de Deus. De outro modo, não
fiz nada. E, então, enquanto dormia ou bebia cerveja em Wittemberg, com meus
amigos Phillip e Amsdorf, a Palavra enfraqueceu tanto o papado que nunca um príncipe
ou imperador conseguiu lhe causar tanto dano. Eu não fiz nada. A Palavra fez
tudo” (in Timothy George, Lendo a Bíblia com o Reformadores, 2015,
p.16)
Seria um terrível equívoco, até mesmo aos romanistas, comparar Roma a
Genebra e Calvino ao Papa, pois, nas entrelinhas, está se admitindo que a
postura papal de infalibilidade só é tolerada pelo amontoado de argumentos
humanos supersticiosos que entorpecem as mentes áridas pela água pura da
Palavra de Deus.
Genebra era governada por quatro síndicos que eram eleitos pelo voto. Esses
cidadãos controlavam não só os negócios temporais (como a condenação do herege
Serveto), mas os religiosos (já que o Estado não era laico). Segundo o
historiador Rev. Alderi de Souza Matos “Calvino jamais exerceu cargos políticos em Genebra e muito menos foi o ‘ditador’
daquela cidade. Na realidade, durante a maior parte do seu ministério, ele teve
um relacionamento difícil com as autoridades civis”.
De fato, se Calvino fosse um ditador, deveria ter implantado a celebração
contínua da Ceia, porque assim compreendia Atos 2.42. Como déspota teria êxito,
quando em 1537, decidiu restringir o acesso a Ceia (que era mensal) àqueles que
não tinham uma vida condizente, assim como obrigar os moradores de Genebra a
ouvir os sermões pregados (Alister McGrath, A vida de João Calvino, 2004,
p.121). George afirma que os Conselhos municipais recebiam amigavelmente o
movimento evangélico, pois queriam expandir suas liberdades frente a
autoridades como imperadores, bispos ou reis, mas, diante de mudanças radicais,
tendiam a limitar os avanços (Timothy George, Lendo as Escrituras com os
Reformadores, 2015, p.173).
Na páscoa de 1538, Calvino e Farel foram expulsos de Genebra e,
finalmente, aquele completou sua viagem a Estrasburgo, mas ficou sossegado
apenas até 1941, pois o Cardeal Sadoleto começou a investir no retorno de
Genebra para a fé Romana. Como o Conselho não possuía uma pessoa a altura de
Calvino para enviar uma resposta chamou Calvino que reage da seguinte maneira
em carta a Pedro Viret: “certamente, não foi sem um sorriso que li o trecho
de sua carta em que se mostrou tão preocupado com minha saúde que me
recomendou, com base nisso, Genebra! Por que não me recomendou logo a cruz?
Pois seria muitíssimo preferível morrer de uma vez a ser, novamente, enviado a
esse lugar de tormento”. O pastoreio em Genebra foi tão traumatizante que o
vê como uma tortura, mas, pouco tempo depois, escreve a Willian Farel: “conquanto
eu não seja ardiloso, não me faltariam pretextos pelos quais pudesse,
astutamente, me esquivar de maneira a justificar-me diante dos homens,
mostrando que não houve erro da minha parte. No entanto, tenho plena
consciência de que é com Deus que tenho de tratar, à vista do qual não se
sustentam tais artifícios da imaginação”.
Vemos, nesses trechos, dessas duas Cartas de Calvino, que ele está
disposto a ir para um lugar de tortura, um lugar que seria preferível à morte e,
que denegrirá sua saúde, não para obter os benefícios humanos (ele os tinha em
Estrasburgo), mas única e exclusivamente para cumprir com a vontade de Deus. Segundo
Lawson (A arte expositiva de João Calvino, 2012, p. 25), chegou,
novamente, em Genebra no dia 13 de setembro de 1541 e ele que pregava em sequência
(verso por verso, semana após semana), ao reassumir o púlpito, que fora
obrigado a deixar há três anos, tomou a Bíblia e ao invés de fazer um sermão
que exortasse as pessoas para a injustiça que acontecera com ele, apenas
continuou a pregar do texto que havia parado na sua última pregação. Esse, de
fato, não é um ditador, mas um Reformador.